Camilo e a Estalagem de Baltar

Este artigo fora originalmente publicado no livro Crónicas Paredenses, Volume II, 2024, p. 415-421. Republicação nos 200 anos do nascimento de Camilo Castelo Branco [16-03-1825 * 16-03-2025]
 
 
No dia  2 de Julho de 1864, o célebre escritor Camilo Castelo Branco (1825-1890) publicava, no jornal O Comércio do Porto, as primeiras linhas da sua obra Vinte Horas de Liteira (Freire apud Barreiro, 1922:540-1). Nesse conto narrativo o autor cria a personagem António Joaquim, que acompanha o próprio Camilo numa viagem a bordo de uma liteira (veículo sem rodas, que podia ser transportado por homens ou animais), num longo itinerário desde o lugar de Ovelhinha (Gondar, Amarante) até à cidade do Porto.

Embora tratando-se de uma obra de ficção, é em geral admitido que o seu autor tenha, de facto, percorrido ou visitado os locais a que faz alusão no decurso da prosa literária. Será, por isso, o caso do espaço em que se desenrola o capítulo XIV, que aqui, por razões óbvias, mais nos interessa. Esse episódio tem por título «Os Percevejos de Baltar».

A determinada altura da viagem, os intervenientes detêm-se nessa localidade do concelho de Paredes: «Como este período estirado me tirasse a respiração, e a liteira parasse na estalagem de Baltar, apeámos» (Branco, 2016:146). Aí aproveitou o autor de Amor de Perdição para elogiar a vitela que lhe fora servida, nas suas palavras verdadeiramente digna de «banquete olímpico», e depois dissertar sobre as tais «grosas de esquadrões de percevejos» que, durante a noite, lhe haviam sorvido sangue no quarto da referida estalagem.

Não nos ocuparemos com a interpretação do quadro, com as intenções autorais, ou sequer com a relação da personagem criada com o próprio criador, ilações que aqui não vêm ao caso – há vários estudos académicos de interesse sobre o tema e para os quais remetemos –, senão apenas para dizer que o capítulo e a história se concluem com a certeza, pela voz de António Joaquim, de que ele e sua esposa, depois de lhes ter sucedido anos antes o mesmo que agora ao narrador, jamais voltariam a deitar-se «em camas da taverna de Baltar».

Mais de 50 anos depois da publicação desta obra, João Paulo Freire dava à estampa Terra Lusa (1917), uma narrativa de viagem não ficcional, onde dedica algumas linhas à freguesia paredense de Vandoma (e não só). Porque alguém lho tivesse dito nessa ocasião, ou por outra razão que até ao momento não lográmos descortinar, afiança Freire que tinha sido naquela freguesia, e não em Baltar, que Camilo havia efectivamente pernoitado. Identificou, inclusive, através de uma fotogravura incluída no seu livro, a casa que servira de pouso ao famoso escritor e que, depois disso, fora transportada para o conto das Vinte Horas de Liteira.

Camilo Castelo Branco

Diz Freire que Camilo confundiu as terras, facto que, no caso concreto, até considerava normal. Isto porque, refere o autor de Terra Lusa, «ainda hoje, para a maioria das pessoas, Vandoma e Baltar, embora duas freguesias distintas, são apenas Baltar» (Freire, 1917:130-313). E acrescenta: «A própria serra de Vandoma é serra de Baltar, e esta gente, daqui até ao Porto, nunca diz – vou a Vandoma – mas sim – vou a Baltar» (Ibid., idem).

No início da sua abordagem a terras vandomenses, Freire comenta, em tom de dúvida, o seguinte: «Deve ficar por aqui algures aquela casa que a pena de Camilo imortalizou nas Vinte Horas de Liteira. Hei-de ver se ma indicam e dir-lhes-ei o que sobre ela se me oferecer dizer-lhes.» Depois proclama o que atrás se citou. Talvez alguém lhe tenha dito ou confirmado por saber, ou ouvir dizer, qual o local onde o escritor havia estado. Ou então, muito simplesmente, fora-lhe indicada a única estalagem – certamente antiga – que ao tempo (1917) existiria nas redondezas, pelo que, o episódio famigerado só poderia ter-se «dado» ali. Já Baltar, essa, ficava para trás.

Poucos anos depois, em 1922, José do Barreiro publica a Monografia de Paredes, onde também, a propósito das duas freguesias vizinhas, se refere ao mesmo assunto. Replica e cita o que havia sido dito em Terra Lusa, acrescentando e dando ainda mais força à mesma tese com algumas afirmações próprias.

Folha de rosto da 2.ª edição da obra Vinte Horas de Liteira

Barreiro começa por dizer que a dita estalagem - «conhecida pela designação de Estalagem de Baltar» - era agora (1922) a casa do Padre Celestino Luís Gaspar (nat. de Baltar, n. 29/06/1853 – f. 25/08/1925). Mas diz ainda que o espaço «também se chamou Estalagem do Gulpilhares e Estalagem do Bento». Ou seja, é importante relevar que o local tinha, ou era conhecido, por outros nomes, que não somente «Estalagem de Baltar». Acrescenta que «nela pernoitou Camilo Castelo Branco, numa vinda de Vila Real ao Porto e depois disse no seu romance Vinte Horas de Liteira “que aí se viu assaltado por ‘grosas de esquadrões de percevejos, que irrompiam em caravanas das cavernas do catre e das luras do tabique’» (1922:540). No final da citação do conto, o historiador da Madalena remata: «A estalagem chamava-se de Baltar, porque esta terra era muito mais falada e conhecida do que Vandoma, que lhe fica contígua». Depois, limita-se a citar o livro de João Paulo Freire, trabalho no qual, como fica evidente, se baseou.

É de crer que, também a Grande Enciclopédia, se tenha apoiado nos autores e nas conjecturas atrás citadas. Na entrada dedicada a Vandoma (Vol. 34, p. 125), pode ler-se que «o lug. de Coval é notável pela existência, outrora, de uma estalagem, onde Camilo Castelo Branco, vindo de Vila Real para o Porto, pernoitou, de que o grande escritor faz uma humorística referência em Vinte Horas de Liteira.» A «fama» entretanto acriticamente propagada, fez ainda com que, de modo sintomático, à via rodoviária que liga o centro da freguesia ao referido lugar do Coval, fosse atribuído o nome de «Rua Camilo Castelo Branco».

Com este conjunto de circunstâncias, ficou firmada a ideia de que o famoso autor se equivocara na identificação de uma das terras onde decorre o seu romance e onde o próprio havia estado. Aparentemente, o romancista que, na mesma obra, se refere a lugarejos concretos e específicos como Ovelhinha, Pidre ou Padrões da Teixeira, que não eram sequer freguesias ou paróquias, ou mesmo a terras não especialmente mais «famosas» do que Vandoma, como Fregim ou Alentém, não fora capaz de distinguir Vandoma de Baltar.

No princípio do século XX, nesta zona geográfica, talvez só se verificasse a existência isolada de uma estalagem em Vandoma, sobretudo junto, ou nas proximidades, dessa via de capital importância que ligava Vila Real ao Porto. É possível que, nessa mesma altura, já não houvesse qualquer hospedaria em Baltar e que, por via disso, só com a de Vandoma fosse possível estabelecer um nexo de causalidade entre o local propriamente dito, o escritor e respectiva lavra.

Todavia, como vimos na Crónica anterior (vide «A Feira e o Centro de Baltar em 1857» in Crónicas Paredenses, Volume II, 2024, pp. 406-414), não era isso que sucedia no espaço temporal mais próximo da escrita e publicação das Vinte Horas de Liteira. Existia, de facto, em 1857, pelo menos, uma estalagem bem no centro de Baltar, junto da mesma Estrada Real, num edifício granítico que mantém a sua traça antiga e é, hoje, um estabelecimento dedicado à restauração. Portanto, a menos que a dita estalagem, em Baltar, tivesse falido ou, por qualquer outra razão, fechado portas nos sete anos imediatamente posteriores[1], torna-se a nosso ver altamente provável que esse estabelecimento ainda existisse quando Camilo por cá andou.

Casa (hoje restaurante) que funcionava como estalagem em 1857
 
Curiosa janela de reduzidas dimensões na casa da estalagem. Estaria ali para servir os propósitos de recepção e acolhimento dos seus hóspedes, ou teria outra função?

Terá sido esta a verdadeira casa onde repousara Camilo – deliciando-se com a famosa vitela – e que serviria de inspiração para o capítulo «Os Percevejos de Baltar» das Vinte Horas de Liteira?

Posto isto e sem podermos, naturalmente, levar a cabo conclusões categóricas e inequívocas, o atrás exposto exige, pelo menos, que levantemos as seguintes interrogações sobre um tema, afinal de contas, tão glosado localmente: porque se diz tão imperativamente que a estalagem a que Camilo se refere sempre, textualmente, como sendo «de Baltar», se situava, afinal, «em Vandoma»? Porque é que se há-de depreender, com tanta facilidade, um «equívoco» ou «confusão» da parte do autor? Presumindo a existência, em 1864, de uma estalagem que sabemos com certezas existir pouco antes, em 1857, no centro de Baltar, e vindo a liteira do lado de Penafiel, que motivo haveria para que o «passageiro» ou «condutor» de Camilo ignorasse a estalagem que lhe vai ser mais próxima para parar antes numa posterior, em Vandoma, ali perto, e ainda por cima, identificando-a como sendo «de Baltar»? Como aceitar que se dava o nome de «Estalagem de Baltar» a um local que, segundo José do Barreiro, até tinha duas outras designações: «Estalagem do Gulpilhares» e «Estalagem do Bento», ou seja, acabava por ter três (!) designações? Dessas três nomenclaturas, porque é que haveria de vingar na clientela aquela que mais facilmente a poderia confundir com essoutra que deveria existir ainda no centro de Baltar?

Não temos, é certo, qualquer evidência segura de que a camiliana «Estalagem de Baltar» fosse a que consta do aludido mapa de 1857 e que aqui consideramos como mera hipótese. De igual modo, também não nos parece menos certa a ausência de evidência suficiente para que se possa afirmar que a estalagem «dos percevejos» fosse, como se tem alegado, na freguesia de Vandoma.

Todavia, usando uma frase muito repetida pelo astrónomo e cientista Carl Sagan, a «ausência de evidência não significa evidência de ausência». E, assim sendo, resta-nos aguardar esperançosamente que, no futuro, nos surja ainda uma qualquer outra indicação ou «evidência» que, em definitivo, nos possa esclarecer melhor quanto a esta questão.


[1] Seria uma situação eventualmente admissível caso tivesse ocorrido, por exemplo, depois de 1875, quando a entrada em funcionamento da ferrovia começou a retirar trânsito e gente da concorrida e antiga Estrada Real n.º33. É possível até que esta tenha sido, de resto, a grande causa do encerramento de muitas das estalagens e tabernas que se encontravam ao longo do seu traçado. Porém, o texto de Camilo data, como se disse, do ano de 1864, o que significa que nem sequer essa conjuntura se poderia aplicar ao caso vertente.

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