As Lendas da Senhora do Salto
O facto de colocarmos no título o substantivo «lenda» no plural torna, desde logo, evidente, a assunção da existência de pelo menos duas, ou até mais, narrativas de pendor tradicional associadas ao culto mariano do lugar do Salto, na freguesia de Aguiar de Sousa. E, com efeito, assim é. Todavia, importa começar por se fazer a diferenciação entre lendas distintas e «variantes» de uma mesma lenda, consistindo estas em versões pontualmente dissonantes de um mesmo quadro narrativo.
Na edição de 18 de Outubro de 1874 do jornal O Primeiro de Janeiro, foi publicado um poema do naturalista Augusto Luso da Silva, a respeito de uma lenda que o próprio dizia ter ouvido, três anos antes, «nas margens do rio Sousa». Em traços gerais, consiste na epopeia de um cavaleiro, que persegue uma lebre até junto de um precipício, ao que se segue uma inevitável queda, uma piedosa e desesperada invocação de Nossa Senhora e, por fim, o milagre da desejada salvação. Isto testemunhado, claro está, pela marca das «patas do cavalo» cravadas em rocha no fundo do penhasco (depressões de formação natural e conhecidas por «marmitas de gigante» ou «turbilhonares»).
Na edição de 18 de Outubro de 1874 do jornal O Primeiro de Janeiro, foi publicado um poema do naturalista Augusto Luso da Silva, a respeito de uma lenda que o próprio dizia ter ouvido, três anos antes, «nas margens do rio Sousa». Em traços gerais, consiste na epopeia de um cavaleiro, que persegue uma lebre até junto de um precipício, ao que se segue uma inevitável queda, uma piedosa e desesperada invocação de Nossa Senhora e, por fim, o milagre da desejada salvação. Isto testemunhado, claro está, pela marca das «patas do cavalo» cravadas em rocha no fundo do penhasco (depressões de formação natural e conhecidas por «marmitas de gigante» ou «turbilhonares»).
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No lugar do Salto, uma placa faz alusão à lenda mais comummente associada ao local |
Este quadro tem variantes, ou seja, pormenores que fazem com que a narrativa seja contada com ligeiras diferenças. Mas nem a versão do naturalista, nem as «variantes» que lhe terão sucedido, se prefiguram como as «primeiras», ou as «mais antigas» que se conhecem associadas ao local. Mas, vamos por partes.
Em primeiro lugar, é necessário sublinhar que a versão contada por Luso da Silva é ela própria uma «variante». Data de inícios do século XVII – apesar de a lenda reportar a acção ao século XII – esse conto lendário, aparentemente da autoria do cronista e monge alcobacense Bernardo de Brito (1569-1617), de um cavaleiro que persegue um animal, que se abeira de um precipício e acaba salvo por intercessão milagrosa de Nossa Senhora: referimo-nos, concretamente, à lenda da Nazaré e de D. Fuas Roupinho, que era já de fama universal quando o botânico «contou» a lenda do Salto no citado poema. Nem as marcas das patas do cavalo faltam no imaginário do Sítio nazareno, onde já há séculos se verificava um grande afluxo de peregrinos oriundos de vários pontos do país.
E por essa «variante» - e suas sub-variantes – nos ficaríamos em relação ao local de Aguiar de Sousa se não houvesse, documentalmente, nada mais antigo, ou diverso, do que esse poema do século XIX. Porém, se o Catálogo dos Bispos ou a Corografia do Padre Carvalho da Costa se limitam a indicar a existência da referida capela em Aguiar, já o Dicionário Geográfico do Padre Luís Cardoso, ou o relatório conhecido por Memórias Paroquiais, de 1758, nos revelam mais qualquer coisa sobre a(s) lenda(s) que a envolve(m). Será mais significativo o teor desta última que o da penúltima, por razões que mais adiante se explicarão. No entanto, citaremos ambas, até porque qualquer uma delas é anterior à «variante nazarena» - a mais comum - da lenda da Senhora do Salto.
O Dicionário Geográfico data de 1747 e refere, a páginas 97 do Tomo I, o seguinte: «Distante desta igreja de Aguiar, quase um quarto de légua, junto ao rio Sousa, em um bosque com penhascos de uma e outra parte do rio, está fundada a Ermida de N. Senhora do Salto, que se festeja no dia da Ascensão de Cristo Senhor Nosso com grande concurso na véspera, e dia, nas Oitavas do Espírito Santo, e em vários tempos do ano: é Imagem milagrosa, antigamente aparecida junto ao rio em uma gruta, que ainda hoje se vê, e os romeiros a rompem, e levam dela os fragmentos, e junto a ela há uma fonte de boa água.»
Como se vê, temos aqui um quadro narrativo completamente distinto. Não há rasto de cavaleiros, nem lebres, nem demónio, nem donzelas, nem sequer patas cravadas em rocha. Esta lenda relata o aparecimento da imagem (em sentido estatuário) numa gruta, posteriormente tomada por «milagrosa».
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Painel de azulejos no frontispício da Capela de N.ª Sr.ª do Salto |
O até certo ponto vulgar aparecimento de uma estátua mariana numa gruta, evidentemente lá colocada por mão humana, talvez constitua base demasiado simplista para quem, a partir dela, queira compor uma peça de literatura romanceada. Enquanto «tradição», ou testemunho que passa de boca em boca, também será certamente uma versão menos apelativa do que a extravagância clássica de um herói a cavalo, o dramatismo da presença do diabo, que tanto povoa e ensombra mentes doutrinadas, a somar a fenómenos físicos de depressões em rocha, tão belamente esculpidos que não podiam ser outra coisa que não produto miraculoso do divino. Talvez por isso, a versão da imagem aparecida na gruta não tenha vingado entre a população, e o mesmo se diga entre a classe de autores, cronistas ou poetas da região que, com o poder da escrita, sua divulgação e autoridade, acabaram, consciente ou inconscientemente, por «impor» versões consideradas bem mais apelativas.
Sucede, porém, que essa simplicidade ou vulgaridade é apenas aparente. Com o necessário rigor e aprofundamento será possível constatar que esta versão da «lenda» ou narrativa esconde, na verdade, uma substância mística e histórica notável, hipoteticamente, até, com valor arqueológico e/ou patrimonial.
Veja-se, por exemplo, o que é dito a respeito da «gruta» da Nazaré, onde o mitológico D. Fuas vislumbrara a imagem salvadora da Virgem: «O Sítio passou a contar com uma gruta, anteriormente desconhecida dos devotos, onde era colocada, para adoração pública, uma das imagens mais antigas da Senhora de Nazaré. É verdade que o lugar fora já habitado em tempos imemoráveis. O Padre Manuel de Brito Alão conta-nos que na sua época se tinham ali encontrado "algu's ossos que parecião de pessoa humana", mas que atribuiria, claro está, ao Frei Romano da lenda. Arqueólogos locais, como Manuel Vieira Natividade e Eduino Borges Garcia, suspeitaram mesmo da existência, respectivamente, de uma gruta pré-histórica e de um culto pagão. Não é de rejeitar a hipótese de que Frei Bernardo de Brito tivesse tido também esta percepção, pois era um grande estudioso das antiguidades locais» (Penteado, 1991:40).
Estes lugares, regra geral ermos ou isolados, sempre foram encarados como espaços potenciadores de transcendência, sendo de evidenciar a «necessidade dos devotos possuírem grutas sacralizadas pela presença de imagens. Estas permitiam a realização de práticas devotas de cariz mágico, tal como a procura da terra que estivera em contacto com o ícone sagrado. Por outro lado, a existência de uma gruta possibilitava ao peregrino a penetração e o contactar com a mãe-terra, receptáculo de fertilidade» (op. cit., pp. 44-5).
É amplamente sabida a prática corrente no cristianismo da sacralização de locais outrora pagãos. É uma possibilidade que, também em relação ao Salto, não se deve negligenciar. No entanto, descortinar evidência de anterior presença ou culto pré-cristão naquele local, é algo de que só a vertente histórica da arqueologia se poderá encarregar, confirmando ou infirmando tal hipótese.
Além da versão que consta no Dicionário Geográfico de 1747, conhece-se ainda uma outra lenda, outro quadro narrativo bem distinto, passado a escrito cerca de uma década depois, nas já aludidas Memórias Paroquiais de 1758.
À pergunta sobre os centros de culto existentes na paróquia de Aguiar de Sousa, o abade local responde: «Tem quatro capelas. No lugar da Sarnada a da Visitação de Santa Isabel. No lugar de Alvre Santa Marta. No de Aguiar S. Sebastião, e todas se festejam nos seus dias, e junto ao Rio Sousa em um deserto sem povoação alguma Nossa Senhora do Salto, que neste mesmo deserto apareceu a umas pastorinhas dizendo-lhe que lhe edificasse naquele sítio uma capela, o que fez um lavrador».
Esta versão exige, antes de mais, um sublinhado: contrariamente a obras corográficas feitas por autores que, provavelmente, nunca estiveram nos locais a que se referem, este último relato fora feito pelo próprio pároco de Aguiar de Sousa, alguém naturalmente conhecedor do local, das suas gentes e de certo bem familiarizado com as «lendas» ou tradições ali existentes.
A versão lendária de Nossa Senhora do Salto que consta das Memórias Paroquiais, obedece a um quadro muito comum de «aparições» registadas ou relatadas não só em Portugal, como em vários outros pontos do sul da Europa, geografias onde a doutrinação mariana – que colocava no centro a figura de Maria, mãe bíblica de Jesus de Nazaré – se revelara mais presente. Após a introdução e franca expansão deste mesmo culto na Idade Média, a partir da Idade Moderna (séc. XVI a XVIII), assiste-se a um reacendimento devocional em torno da Mater Dei como reacção ao Protestantismo, que, por sua vez, tratava de menosprezar e ridicularizar tais práticas cristãs (Dias, 2019).
Desde há muito que aspectos circunstanciais, geográficos e sociais se conjugam em torno de uma hipotética revelação ou manifestação mística, cuja interpretação se encontra invariavelmente associada ao quadro mental e sobretudo religioso dos seus protagonistas. Regra geral, as ditas «aparições» acontecem em locais ermos, campestres, normalmente a pastores, ou «pastorinhos», sobretudo a crianças, que eram aquelas a quem, na maior parte das vezes, estava confiada a tarefa do pastoreio. A interpretação, como se aludiu, obedece ao logos e às limitações próprias de quem experiencia o evento, sob a forte influência da religiosidade que lhes fora transmitida ou doutrinada, pelo que, para uma «vidente» cristianizada do sul da Europa, a visão ou percepção de uma silhueta ou forma feminina num local que apele à transcendência acabará por ser, inevitavelmente, interpretada como a figura bíblica da Virgem Maria. Porém, se tal ocorrer, por exemplo, com uma criança latino-americana e no seu respectivo contexto social e religioso, a mesma tal forma ou figura feminina pode aqui já ser tida e interpretada como a «aparição» de Iemanjá, divindade do Candomblé.
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A Capela do Salto e a sua envolvente |
Episódios de quadros narrativos, como o relatado em 1758, para justificar a construção da capela do Salto, sucederam-se ou repetiram-se, com ligeiras nuances, em vários períodos da história. Há milhares de idênticos fenómenos registados em território europeu, ainda que a esmagadora maioria desligados da oficialidade da Igreja.
Em Portugal, no séc. XV (1480), há notícia de uma «aparição» de Nossa Senhora a um pastor da Azambuja. Um século depois, na Batalha, a mesma manifestação divina a uma pastorinha. Em 1757, Nossa Senhora «aparece» a três meninas pastorinhas em Folhadas, no Marco de Canaveses. Um ano depois, em Fátima (note-se!), a mãe do Céu surge a uma pastorinha «muda». Mais de século e meio depois, em 1917, naquele que é o mais conhecido evento do género, três pastorinhos da mesma localidade do concelho de Ourém são visitados por uma «Senhora vestida de branco», imediatamente identificada como a Virgem Maria, que lhes fala e reaparece durante meses. Também aqui podemos e devemos acrescentar o caso de Bitarães, neste concelho de Paredes, no qual dois irmãos, de 6 e 9 anos de idade, também pastorinhos, afirmaram terem visto, na Semana Santa de 1929, a aparição de «uma Senhora vestida de preto ó p’ra baixo e de branco, com fitas azuis, ó p’ra riba (…) com uma nuvem azul à volta» (Silva, I. 2020:327).
Em jeito de conclusão, podemos então dar conta da existência de não uma, mas três lendas distintas associadas ao culto do lugar e capela do Salto. A mais antiga de que temos registo escrito, datada de 1747, consiste no aparecimento da estátua mariana venerada numa gruta do lugar. A segunda, de 1758, descreve a aparição mística ou espiritual de Nossa Senhora a umas pastorinhas, tendo a Virgem pedido a construção da capela. A terceira e última, a versão ou variante «nazarena» – com diversas sub-variantes –, pela primeira vez registada no século XIX, desenha o quadro composto por um cavaleiro, pelo demónio sob a forma de animal, uma queda e consequente salvação milagrosa por intercessão da Virgem Maria. Esta última é a mais comummente invocada no presente, repetindo ou espelhando, como aludimos, com certas nuances, a lenda de fama universal de D. Fuas Roupinho.
NOTA: Ainda sobre este tema, aconselhamos complementarmente a leitura do artigo Frei Agostinho de Santa Maria e a Lenda da Senhora do Salto (1716), in Crónicas Paredenses, Volume II, 2024, p. 389 e ss. (mais info).
Bibliografia:
DIAS, Geraldo J. A. C. A Devoção do Povo Português a Nossa Senhora nos Tempos Modernos in História: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol. 4. Porto: FLUP, 2019.
PENTEADO, Pedro M. P. Nossa Senhora da Nazaré: Contribuição para a História de um Santuário Português. Dissertação de Mestrado apresentada à Fac. Letras Univ. Lisboa. Lisboa: FLUL, 1991.
SILVA, Ivo R. Paredes e a Primeira República. CEI/CM Paredes, 2020.
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