Judas Iscariotes, o apóstolo que, segundo o Novo Testamento, entregou e traiu Jesus Cristo, não tem, precisamente por essa razão, o estatuto de «santo» no rol hagiológico da Igreja Católica. Daí que a referência irónica do título tenha aqui apenas um único propósito: chamar a atenção para a singularidade de um dos vitrais da igreja paroquial de Castelões de Cepeda, precisamente aquele que representa a personagem «maldita» da Última Ceia. Nessa composição figurativa, Judas aparece com a sua «inseparável» bolsa dos dinheiros, com a veste manchada, mas também com a auréola, ou halo, a envolver-lhe a cabeça, sendo este último elemento, de facto, aquele que mais pode destoar ou surpreender o visitante.
Como é sabido, ainda que com origens pagãs, ou anteriores ao cristianismo, o aro dourado, também chamado auréola ou halo, transformou-se, entretanto, num «dos símbolos ou atributos gerais da iconografia cristã, com o qual se distinguem as imagens sagradas das profanas» (GEPB, Vol. 2, p.722). A marca passou a simbolizar, ou a reflectir tradicionalmente, a «glória celeste», a «perfeição» e a «vitória», regra geral, figurando em numerosas e plurisseculares representações gráficas de santos, virgens ou mártires, até do próprio Cristo e de Deus Pai, por exemplo, na iconografia da Santíssima Trindade.
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Vitral de Judas da igreja de Castelões de Cepeda, Paredes |
Episódio bíblico central da Paixão e, por via disso, matéria inspiradora de múltiplos artistas ao longo da história, a Última Ceia é também palco privilegiado de evidenciação simbólica e pictórica da diferença – e do isolamento negativo – de Judas Iscariotes em relação ao Mestre e aos restantes onze companheiros. Alguns exemplos: a pintura do catalão Jaume Serra, datada de 1370 e exposta no Museu de Palermo, Itália, mostra-nos onze discípulos e o próprio Cristo com aro dourado, com um Judas de braço esticado e sem qualquer halo; o afresco de Fra Angélico, de 1440, coloca auréola na cabeça de todos os presentes da Ceia, inclusive de Iscariotes, mas neste último a cor dourada dá lugar à cor negra; a tela de Jacomart, do século XV (1450, Catedral de Segorbe), dispõe os doze numa mesa circular, todos com auréola, excepção feita ao portador da bolsa das trinta moedas de prata; a pintura quinhentista de Juan de Juanes (1560, Museu do Prado), revela onze aureolados no mesmo lado da mesa e ladeando Cristo, mas separa o elemento da traição, colocando-o na outra parte da mesa, de frente para Jesus, e sem halo; o ícone de Ushakov (1685), não só exceptua Judas da figuração com auréola, como o posiciona de costas para Cristo.
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A Última Ceia, Jaume Serra (1370). Judas é o único dos presentes sem auréola. |
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A Comunhão dos Apóstolos, de Fra Angelico (séc. XV). Todos os presentes têm halo dourado, excepto Iscariotes, cuja auréola é de cor negra.
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Na Última Ceia de Juan de Juanes (séc. XVI) todos os apóstolos têm auréola, excepto Judas. |
Passando das telas para o âmbito da arte vitral, vemos, por exemplo, nos painéis da igreja de S. Lourenço, em Nuremberga, datados do século XV, um Judas sem auréola e com veste verde, sendo esta considerada uma cor «que traz desgraça» (Lushington, 1991:111); na igreja de São Gummaro, em Lier, na Bélgica, um quadro de apóstolos que rodeiam Jesus de pé, com halo dourado, e um Judas prostrado, com a bolsa, e de halo enegrecido; no mesmo país, na Catedral de Bruxelas, à volta da mesa reúnem-se os doze aureolados e um Iscariotes sem halo e com bolsa; na magnífica Última Ceia da catedral de Moulins, em França, os doze (incluindo Cristo) surgem com aro, enquanto o denunciador aparece desprovido de tal símbolo, posto de costas e com expressão malevolente.
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Vitral da Última Ceia da Catedral de Moulins, em França. Judas surge sem halo, com expressão malevolente e de costas voltadas para os demais presentes na Ceia. |
Noutras representações, quando se trata de identificar individualmente, ou em separado, os doze apóstolos, opera-se simplesmente a substituição narrada nos Actos (Act 1, 21-26), ou seja, excluindo Judas e introduzindo Matias.
No ano de 2008, na igreja paroquial de São Salvador de Castelões de Cepeda, em Paredes, foram colocados vitrais nas janelas da capela-mor, coro e assembleia, estando neles representados os apóstolos, a Virgem Maria, o Espírito Santo e Jesus Cristo. São da autoria de Alice Fernandes e, segundo o portal da DGCP, foram pintados por FR Vetreria Artistica de Milão (DGPC/MC, www.monumentos.gov). No respectivo vitral, o primeiro do lado direito de quem entra no templo pela porta principal, Judas Iscariotes é representado – desde logo, sublinhe-se que não se operou a sua substituição por Matias –, como se disse, por uma bolsa rubra, uma veste manchada, de aspecto «mendicante», e um halo que lhe envolve a cabeça. Nenhum dos elementos que compõem aquele «quadro de luz» foi ali colocado de forma arbitrária. Eles correspondem, no seu conjunto, a uma mensagem ou significação que Alice Fernandes quis, de facto, atribuir à sua obra.
Questionada sobre a mensagem ou significado dos elementos
presentes no vitral de Judas Iscariotes da igreja de Paredes, a autora
revelou-nos ter sido sua intenção, de alguma forma, «reabilitar» uma figura
bíblica que, do seu ponto de vista, tem sido «injustiçada» pela história. Bebeu
parte da inspiração no apócrifo «Evangelho de Judas», descoberto no Egipto na
década de 70, mas traduzido, publicado e largamente difundido pela National
Geographic Society na precisa altura em que o projecto dos vitrais da
igreja de Castelões de Cepeda estava a ser idealizado.
Nesses polémicos escritos, de teor gnóstico,
originalmente datados de meados do segundo século depois de Cristo – embora o papiro
descoberto seja já uma cópia dos séculos IV-V d.C. –, consta, como uma das
mensagens essenciais, a revelação de Judas ter servido como mero instrumento da
vontade sincera do seu Senhor, e não propriamente como traidor corrompido,
actuante a soldo de trinta moedas e por livre arbítrio. Os textos aludem a um
acto de clara premeditação, à obediência de uma instrução dada «em segredo» por
Cristo, no sentido de que Judas cumprisse a vontade do Mestre de «sair deste
mundo material e contrário a Deus e regressar à sua morada celestial» (Kasser et
al., 2006:84). O «novo evangelho» chega a descrever Judas, através das
palavras do próprio Jesus, como «iluminado» («A estrela que aponta o caminho é
a tua estrela.»), «discípulo proeminente» («Tornar-te-ás o décimo terceiro, e
serás amaldiçoado pelas outras gerações – e acabarás por as governar.») e «favorito»
(«Tu suplantá-los-ás a todos. Porque tu sacrificarás o homem que me reveste»).
Convém sublinhar, porém, a respeito da «historicidade»
destes escritos, que os apócrifos considerados são comprovadamente posteriores
aos Evangelhos ditos canónicos de Marcos, Mateus e Lucas, que datam de finais
do séc. I, inícios do séc. II d.C. O autor gnóstico do Evangelho de Judas, que
se desconhece, ao invés de criar qualquer espécie de narrativa histórica, terá
alegorizado sobre os textos sagrados pré-existentes, colocando nas palavras e
gestos dos intervenientes aspectos basilares da sua crença, ou da sua própria
filosofia religiosa.
Mas independentemente da «veracidade histórica» que esteja
na base das várias narrativas, ou nas motivações e acções dos seus directos
intervenientes, cuja análise, discussão ou debate prossegue e prosseguirá
inevitavelmente «pelos séculos dos séculos», o que é certo é que foi a referida
versão gnóstica – numa interpretação literal e historicista – que motivou a
autora dos vitrais a incutir um conjunto simbólico diferenciador à
representação de Judas.
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Primeira página do papiro (séc. IV-V) que constitui uma cópia do Evangelho de Judas (séc. II) |
Em contraponto com a distinção pejorativa que, ao longo da
história, como vimos pelos exemplos citados, foi sempre incutida pela arte
sacra ao «traidor» da Paixão, aqui, em Paredes, fora-lhe conferido um todo
figurativo que aponta sugestivamente num outro sentido. Sentido este que
transformará, desde logo, a peça artística em si, por ventura, e dada a singularidade
do seu simbolismo, num exemplar único – ou, pelo menos, raro – no panorama da
arte sacra contemporânea do nosso país.
A veste «mendicante», pobre e conspurcada, tem o condão de
nos transportar para a «descompostura» histórica, plurissecular, do apóstolo
«maldito», condenado durante séculos ao papel de pecador maior da humanidade,
paradigma da maldade dos homens, instrumento de anti-semitismo, símbolo da
corrupção, da traição e do consequente arrependimento desesperado, só
«ultrapassado» ou «vingado», na narrativa de Mateus, por uma trágica morte por
suicídio. Contudo, paralelamente, quis a autora que esse «mendigo» nos surgisse
«coroado», «vitoriado» ou «glorificado», por um símbolo que a tradição tem
reservado aos «santos» e às mais altas divindades – ao próprio Cristo e a Deus
Pai –, equiparando-o, pelo menos, aos demais apóstolos também representados nos
outros vitrais. Com o elemento da auréola, devolve-se à figura a ideia factual
de que aquele seguidor íntimo de Cristo era ou foi, também, pelo menos até
certa altura, tão «santo» como os «santos» hoje venerados nos altares das
igrejas de todo o mundo cristão.
Nos Actos dos Apóstolos, numa passagem atribuída a Pedro, o «traidor» é apresentado como tendo sido «um dos nossos», a quem fora consagrada «parte no nosso ministério» (Act 1, 17-22). Em seguida, prossegue o mesmo texto, «este homem adquirira um campo com o salário do seu crime. Depois, tombando para a frente, rebentou pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram». A auréola como «um dos nossos», a veste manchada como as «entranhas que se derramaram». Que outro texto, que não esta passagem do Novo Testamento, poderia legendar melhor o belo e singular vitral de Judas Iscariotes da igreja de Castelões de Cepeda?
BIBLIOGRAFIA / FONTESAA. VV.
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Vol. 2.
KASSER, R. et al.
O Evangelho de Judas: do Codex Tchacos. Lisboa: Temas e Debates / National Geographic Society, 2006.
LUSHINGTON, Laura (legend.).
A Bíblia em Vitrais. Coimbra: Gráfica de Coimbra e Angus Hudson Ltd., 1991.
PORTAL DGCP, Direcção-Geral do Património Cultural / Ministério da Cultura, www.monumentos.gov
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