Humberto Delgado em Paredes: As Eleições de 1958
Terá sido o militar Henrique Galvão, na altura já detido por conspirar contra o regime e, mais tarde, protagonista do célebre episódio do paquete «Santa Maria», a colocar ao general Humberto da Silva Delgado a hipótese da candidatura deste à presidência da República como «melhor método para depor Salazar». O ainda putativo candidato, não obstante ter participado activamente no golpe de 28 de Maio de 1926 – que ele considerara entretanto ter sido «falseado» – e ter exercido vários cargos diplomáticos com a chancela do Poder, havia recusado aderir à União Nacional e dado mostras de oposição ao carácter opressivo da ditadura. Acrescia ainda, ao seu estado de espírito contestatário, uma certa revolta contra agravos e desmerecimentos particulares de que fora alvo durante a sua carreira.
No início de um dos capítulos do seu livro de memórias, o general da Força Aérea faz uma radiografia concisa, mas objectiva, do país: «De alto a baixo, Portugal é um país de pobres, que pede pão, ou trabalho, ou protecção, e isto inclui, não só os pedintes sem um tostão de seu, mas também o futuro professor que jamais terá o seu lugar se a P.I.D.E. se opuser à sua nomeação, o comerciante que tem de pertencer ao Grémio apropriado se quiser vender alguma coisa e que fracassa com certeza se houver a mínima presunção de que partilha opiniões políticas pouco recomendáveis, e até mesmo o médico que precisa de se treinar nos hospitais civis e que corre o risco de ser reprovado se não pertencer à “ordem estabelecida”» (Delgado, 1974:119 e ss.).
Delgado aceitou o repto dos oposicionistas. O programa de candidatura assentava em quatro aspectos essenciais: 1) «a pacificação da família portuguesa», entre outras medidas, com amnistia aos presos políticos e reintegração de oficiais militares; 2) Revogação dos decretos que suspenderam a liberdade de expressão (art.º8.º da Constituição); 3) Nova lei eleitoral e novo recenseamento (com o fim de se marcarem novas eleições a curto prazo); 4) A «moralização dos costumes políticos e da administração pública» (Proclamação…, Serviços de Candidatura do Porto, 1958:11-12).
Com uma mundividência claramente demo-liberal, adquirida ou aprofundada em vários anos de vida e de missão (militar e diplomática) fora do país e mormente nos Estados Unidos da América, Delgado caracterizava-se ainda pelo seu carisma contagiante e verbo mobilizador. A forma como galvanizava as massas e reunia um significativo espectro de apoios de notáveis da sociedade, potenciava a esperança da efectiva possibilidade de ruptura com o salazarismo vigente. Aliás, isso mesmo e sem equívoco o próprio prometera a 10 de Maio de 1958, na famosa conferência do Café Chave d’Ouro, em Lisboa, que marcara o arranque da campanha eleitoral: «Obviamente, demito-o!», respondeu Humberto Delgado a uma pergunta de um jornalista da France Press acerca das suas intenções em relação a Salazar. «Levantou-se um espantoso clamor de entusiasmo. Durante anos, as pessoas haviam acalentado secretamente aquele pensamento, mas, devido ao medo, aliás justificável, ou a uma extraordinária astúcia, jamais fora expresso em voz alta. Agora, era como se um vulcão tivesse entrado em erupção», escreveu o general nas Memórias (idem:176). A declaração «sacudiu as águas mornas da política portuguesa com tal violência que até os oposicionistas de superfície se escandalizaram com tanto desrespeito pela figura sacrossanta do ditador» (Múrias, 1975:5 apud Reis, 2019:23).
O realismo de Delgado não podia deixar de se estender também, naturalmente, às possibilidades de sucesso, cônscio que estava das condicionantes de uma eleição organizada sob as regras próprias de um país em ditadura de partido único. Preparava-se, pois, uma farsa, que, como refere Joana Reis, «constituía, a nível interno, uma forma de legitimar o poder e, a nível externo, oferecia uma falsa aparência de liberdade, dando a ilusão de que os cidadãos podiam escolher livremente» (Reis, 2019:17). O que, por certo, nem Delgado nem a restante Oposição poderiam prever, era o grau de perigosidade que todo o contexto do sufrágio efectivamente acabaria por representar para o regime. Não só pela indisfarçável adesão popular à campanha – ainda assim largamente condicionada –, como pelos resultados, que acabariam por ser de tal forma surpreendentes, que só com grande escândalo foi possível, à última hora, manipular.
De início, apresentaram-se três candidaturas: Américo Tomás, contra-almirante, candidato apoiado pela União Nacional; Humberto Delgado, general, como independente; e Arlindo Vicente, advogado, pela Oposição Democrática e com o apoio do PCP. Este último viria a desistir a favor de Delgado poucos dias antes da eleição, concentrando-se todo o campo oposicionista em torno do general.
Com data de 5 de Abril de 1958, a dois meses e três dias da votação, fora endereçado ao presidente da Câmara Municipal de Paredes, Augusto Moreira Teixeira de Barros, um documento que assume hoje particular interesse histórico a nível local. Nesse documento, era solicitada a emissão de certidões de eleitor de um conjunto de cidadãos paredenses «para efeito da apresentação de candidatura do General Humberto Delgado».
Em plena vigência ditatorial, num quadro de forte repressão sobre todas as formas de oposição ao estabelecido, subscrever uma iniciativa política contrária ao regime não deixava de ser um acto simultâneo de resistência – no quadro da luta pela liberdade – e de rebeldia – na perspectiva da Situação. E da mesma forma que o «General Sem Medo» se propunha, com arrojo público, derrubar o governo de Salazar, quem o apoiava dava mostras de prosseguir a mesma intenção, i.e. de desafiar o regime, numa atitude que poucos ousavam tomar e, muito menos, de forma pública e assumida. Foram vários, ao longo de toda a campanha nacional de Delgado, os seguidores intimidados, presos, agredidos e detidos pelas autoridades. Além disso, «o período oficial de campanha servia igualmente um outro propósito: identificar novos membros da oposição, e no fundo, actualizar informação sobre a forma como a oposição se organizava, os apoios de que dispunha e a forma como estes se concretizavam» (Schmitter, 1999 apud Reis, 2019:19).
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Ofício do Presidente da Câmara Municipal de Paredes ao Governador Civil do Porto, dando conhecimento do requerimento de certidões de eleitor para a candidatura de Humberto Delgado (ADP, M1195 n.º2) |
Indício da especial atenção que um documento deste tipo suscitava à oficialidade, residirá no facto de o teor do mesmo não ter ficado no estrito âmbito dos corredores e do expediente da autarquia paredense. A missiva dactilografada, contendo o nome, idade, estado civil e morada de cada um dos vinte e cinco «delgadistas» de Paredes, fora reencaminhada ao cuidado do Governador Civil do distrito, estando hoje incorporada no fundo respectivo do Arquivo Distrital (M1195 n.º2).
Não obstante o melindre, quiçá até por não ter razões legais para não o fazer, as certidões pedidas mereceram o deferimento por despacho do presidente. Transcreve-se, em seguida, esse documento na íntegra:
«Adalberto Teixeira de Sousa Pereira, chefe da secretaria da Câmara Municipal de Paredes; Certifico, devidamente autorizado por despacho do senhor Presidente desta Câmara e para efeito da apresentação da candidatura do Excelentíssimo Senhor Humberto da Silva Delgado, General da Força Aérea Portuguesa, para Presidente da República, que do recenseamento eleitoral electivo ao ano de mil novecentos e cinquenta e sete para as eleições da Presidência da República, consta que estão devidamente inscritos como eleitores os seguintes cidadãos: António Augusto Gonçalves da Costa, de sessenta e nove anos, casado, comerciante, da Praça Doutor Oliveira Salazar; José Augusto Barbosa de Barros, de cinquenta e quatro anos, casado, proprietário, Parque; e Manuel Teixeira, de quarenta e nove anos, casado, proprietário, Parque, todos da freguesia de Castelões de Cepeda; Henrique de Matos Almeida, de trinta e oito anos, casado, negociante, do Viveiro; Joaquim da Costa, de cinquenta anos, casado, industrial, do Padrão; José Dias Carneiro, de cinquenta e nove anos, casado, industrial, de Moinhos; Justino da Rocha Graça Ribeiro, e trinta e quatro anos, casado, padeiro, de Corregais; Manuel Dias Carneiro, de vinte e nove anos, casado, comerciante, de Moinhos; Mário Augusto Ferreira da Costa, de quarenta anos, casado, industrial, de Soutelo; Sérvulo Dias Castelo, de quarenta e cinco anos, casado, comerciante, de Soutelo; e Venâncio da Silva Dias, de quarenta e quatro anos, casado, comerciante, da Levadinha, todos da freguesia de Lordelo; Albino Moreira dos Santos, de cinquenta e dois anos, casado, industrial, da Lage; António Carlos Martins, de cinquenta e quatro anos, casado, industrial, do Capelo; António de Sousa Barbosa, de vinte e quatro anos, solteiro, marceneiro; Felisberto de Oliveira Molar, sessenta e dois anos, casado, reformado, de Santa Luzia; Júlio Martins de Matos, de cinquenta e dois anos, casado, alfaiate, de Aboim; Luís Ferreira Campos, de trinta e oito anos, casado, industrial, de Cabaneiras; Manuel Coelho Barbosa, de quarenta e dois anos, casado, industrial, da Lage; Manuel de Seixas, de cinquenta e seis anos, casado, industrial, de Aboim; todos da freguesia de Rebordosa; Alberto Francisco dos Santos, de sessenta e dois anos, solteiro, proprietário, da Mámoa; Azemiro Teixeira Coelho Martins, de cinquenta anos, casado, proprietário, do Calvário; Lourenço Coelho Ferreira, de cinquenta e cinco anos, casado, proprietário, da Estrada; e Manuel Augusto da Silva Brandão, de setenta e quatro anos, casado, solicitador, de Atainde, todos da freguesia de Baltar; e António Coelho de Magalhães, de cinquenta e cinco anos, casado, marceneiro, da Giesta e António Gomes Machado, de quarenta e três anos, solteiro, industrial, de Moinhos, ambos da freguesia de Vilela, e todos deste concelho de Paredes. --- Por ser verdade e assim ter sido requerida, passo a presenta certidão que assino. Paredes, cinco de Abril de mil novecentos e cinquenta e oito. E eu Adalberto Teixeira de Sousa Pereira, chefe da secretaria a subscrevi e assino.»
Este pedido de certidões de eleitor de 25 paredenses para a candidatura de Humberto Delgado foi solicitado por Manuel Teixeira, o que pode indiciar o seu especial papel neste contexto. Sendo natural de Penafiel, era casado com Branca Celeste Teixeira, de Castelões de Cepeda, onde passou a residir. O seu filho Luís [Gonzaga Teixeira] viria a ser presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Paredes depois do 25 de Abril, nomeadamente entre 1974 e 1977 (Costa, 2017:152 e ss.).
Alguns apontamentos biográficos sobre parte dos nomeados no referido documento: António Augusto Gonçalves da Costa foi um precursor republicano de Castelões de Cepeda, membro das primeiras Comissões Municipais Administrativas do pós-5 de Outubro de 1910; Joaquim da Costa, era empresário de móveis do lugar do Padrão, Lordelo; José Dias Carneiro, também empresário no ramo do mobiliário do lugar de Moinhos da mesma freguesia, pai de outro dos subscritores, Manuel Dias Carneiro, comerciante; Mário Augusto Ferreira da Costa, igualmente industrial de móveis, do lugar de Soutelo, Lordelo; Sérvulo Dias Castelo, comerciante de materiais de construção, presente na toponímia da freguesia de Cristelo; Venâncio da Silva Dias, patrono da empresa «Móveis Venâncio» (de Venâncio da Silva Dias e filhos), em Lordelo; Albino Moreira dos Santos, industrial de madeiras do lugar da Lage, freguesia de Rebordosa; Luís Ferreira de Campos, também empresário do sector do mobiliário (serração) e da mesma localidade; Manuel Coelho Barbosa, igualmente industrial do mesmo ramo e da mesma freguesia; Alberto Francisco dos Santos, Azemiro Teixeira Coelho Martins, Lourenço Coelho Ferreira e Manuel Augusto da Silva Brandão estavam, todos eles, ligados aos Bombeiros Voluntários de Baltar.
Deixamos propositadamente para o fim, o democrata Felisberto de Oliveira Molar (1893-1985). Natural de Gandra, veterano da Grande Guerra (vide Paredenses na Grande Guerra, p. 110-112), autarca na sua terra natal e em Rebordosa, foi também comandante da corporação de bombeiros de Baltar. Sobre si, há a destacar um testemunho curioso e no âmbito da temática em apreço.
No quadro legal (ou oficioso) destas eleições, os boletins de voto eram previamente distribuídos pelos eleitores recenseados, tarefa que no caso das candidaturas do regime era desempenhada pelos organismos do Estado, mas que no que tocasse à Oposição, eram-no pelos próprios candidatos ou candidaturas (apoiantes). Os boletins eram folhas 15x10cm, que continham apenas o nome do candidato e profissão, ou patente militar neste caso (por ex. «Humberto da Silva Delgado – General»), que o eleitor, no dia da eleição, levava até à assembleia e depositava dobrado na urna. Entre muitos outros actos de sabotagem prévia e de condicionamento, o regime procurou não só distribuir os seus boletins, como também, por diversas formas e meios, impedir a aceitação dos demais. Felisberto Molar encarregara uma das suas filhas de entregar alguns dos impressos de voto de Humberto Delgado em Rebordosa. Adriana Molar, que na altura tinha 12 anos de idade, recorda-se sobretudo dos «nãos» que ouviu da população, que tinha instruções «do Dr. Rangel» para proceder dessa forma. E assim, com receio de represálias da «autoridade» local, muitos foram inibidos de votar no candidato oposicionista. António Martins da Costa Rangel, médico, presidiu à Comissão de Rebordosa da União Nacional na década de 50 e havia sido, entre 1931 e 1932, presidente da Câmara Municipal de Paredes.
Perspectivando sociologicamente o conjunto destes vinte e cinco cidadãos eleitores, verificamos, desde logo, uma maioria muito significativa de empresários do ramo do mobiliário. Este facto, por si só, pode expressar sinal de insatisfação do sector com as políticas do corporativismo económico do Estado Novo. Insatisfação essa que teria de ser forçosamente agravada, porque o acto não deixaria de ser demasiado arriscado, pessoal e profissionalmente, acaso se tratasse de mero «sinal de protesto». Por outro lado, também evidente, mas de interpretação mais difícil, a adesão de vários membros ligados especificamente a uma corporação de Bombeiros. Tal pode traduzir outra insatisfação sectorial, ou tão simplesmente um maior poder de influência de algum «delgadista» no seio do organismo. Além disso, são quase todos proprietários, industriais, homens de negócios, membros de uma média/alta burguesia local. Não parece haver, de resto, aqui uma grande diferença a nível socio-económico entre este e o sector político-partidário que dirigiu politicamente o concelho durante a chamada Primeira República (vide Paredes e a Primeira República, 2020:46-47).
Por outro lado, estes eleitores, que estavam devidamente recenseados, teriam de ser cidadãos «exemplares» aos olhos do regime, «enquadrados» no sistema, dotados da chamada «idoneidade moral». Isto porque a legislação eliminava dos cadernos todo aquele que fosse identificado como «desafecto ao regime», condenado e alvo de privação oficial de direitos civis e políticos, que estivesse falido ou insolvente, que professasse qualquer ideologia contrária «à existência de Portugal como Estado independente e à disciplina social» (Reis, 2019:18-19). Isto excluía, à partida, proximidades declaradas ou suspeitadas com partidos e/ou organizações ditas «subversivas», em particular comunistas, socialistas ou maçónicas.
Resumidamente, talvez se possa considerar o sector democrático/delgadista do concelho como um todo economicamente favorecido, respeitador da legalidade instituída, mas evidentemente preocupado, ou ameaçado, também economicamente, com o rumo da ditadura. Isto não exclui ou anula, de nenhum modo, a possibilidade da defesa sincera de ideais ou princípios democráticos, ou o facto de estes homens não se reverem de todo no carácter opressivo do Portugal de Salazar a que Humberto Delgado quereria obstar.
A campanha eleitoral propriamente dita, pelo lado da Situação, fez-se sentir em Paredes, desde logo, pelos meios de comunicação social «visados» e controlados pela censura. Logo à partida, pelo único periódico que se publicava àquela data no concelho: O Progresso de Paredes.
Na edição de 24 de Maio de 1958, já com a campanha ao rubro, é difundido, a rogo da Comissão Concelhia de Paredes da União Nacional, um texto de Alberto Pinheiro Torres e que havia sido originalmente publicado no semanário A Ordem. Não deixando de defender Salazar e o seu legado, o autor parece, ainda assim, reconhecer levemente algumas «imperfeições» do regime: «Nem tudo é perfeito na obra do Estado Novo. O próprio Salazar, com a sua política de espírito e da verdade, o reconheceu. Mas essa obra tem de ser vista em conjunto; e tudo nos leva a esperar que as deficiências, desvios, abusos existentes ainda serão remediados, corrigidos, reparados.» Em seguida, o ex-deputado nacionalista faz um apelo directo ao voto: «Votar no Almirante Américo Tomás, ao qual se deve o nosso admirável regresso do mar, e que no dia 13 esteve em Fátima, afirmando, assim, as suas crenças católicas, é garantia de que a salutar Redenção Nacional iniciada no 28 de Maio continuará».
Os defensores do regime vincaram sempre e de modo especial durante toda a campanha, como mácula impagável, o ateísmo de Humberto Delgado. E daí as referências à fé do seu próprio candidato – que até «esteve em Fátima»… –, insistindo na demarcação ideológica que colocava, de um lado, o homem «de Deus», o seu, e do outro o opositor, o lado «do mal», da iniquidade. Por isso, referia-se no mesmo artigo, «a voz da Igreja, por toda a parte, manda que os católicos votem em quem ofereça garantias suficientes para a tutela dos direitos de Deus e das almas, para o bem comum, das famílias e da sociedade segundo a lei de Deus, e a moral cristã». Até o próprio Papa, Pio XII, era invocado nesta hora, pois segundo Pinheiro Torres, de acordo com a sua doutrina, não havia margem para hesitações: «(…) o nosso voto deve ser para o candidato da União Nacional, a que preside Salazar, católico de credo e mandamento, ao qual muito deve a Igreja que o tem reconhecido.»
Na edição seguinte do mesmo jornal, a 31 de Maio, era agora reproduzido e uma vez mais a pedido da concelhia de Paredes do partido único, um artigo d’A Voz do Pastor, jornal da Diocese do Porto. Após citar o bispo de Annecy que bradava contra as «opressões» da Igreja por parte dos ateus, o texto era concluído com as seguintes palavras: «Em face desta doutrina, não é lícito aos católicos dar o seu voto a candidatos ateus ou àqueles que não se comprometem a “defender a observância da lei divina e dos direitos da Igreja na vida particular e pública”, como lembrou, há tempos, a Sagrada Congregação Consistorial. Nem tampouco aos que estendem mão acolhedora aos inimigos da ordem, da religião, dos valores cristãos. Diz-me com quem andas…” (…)».
A principal estratégia de propaganda da Oposição foi a campanha de rua, de contacto directo, «à americana» – quiçá por inspiração nas acções de marketing político de Stevenson e Eisenhower, que Delgado acompanhara de perto em 1952 e 1956 (Reis, 2019) –, como nunca, aliás, havia sido feito no nosso país. Teve o seu apogeu na cidade do Porto, a 14 de Maio, onde uma multidão de largos milhares de pessoas (200 mil, segundo a generalidade das fontes) acorre a saudar efusivamente o homem em quem os democratas e anti-salazaristas depositavam esperanças. O acontecimento «assustou o regime pela dimensão da vaga de fundo, dando indícios ao Poder de que a demissão de Salazar era um anseio popular» (Delgado, I. et al., 1998:80).
Foram criadas comissões de apoio «democráticas» em todo o país. Entre as suas tarefas estavam actividades fulcrais, como a recolha das assinaturas indispensáveis à formalização da candidatura, a distribuição dos boletins de voto, a fiscalização do sufrágio, a colocação de propaganda (que era constantemente retirada e destruída) ou ainda a recolha de fundos de campanha. Nesta última vertente, sabe-se que Penafiel e Paredes contribuíram, conjuntamente, com o montante de 2350$00, valor angariado no dia em que o general visitou os dois concelhos (Cunha, 2014:189).
No dia 15 de Maio, coincidentemente com o seu 52.º aniversário natalício, Humberto Delgado desloca-se a Penafiel. Faz uma visita de cortesia e homenagem à sepultura e à Obra do Padre Américo, em Paço de Sousa, instituição de cujo jornal (O Gaiato) era há muito subscritor – e, por sinal, um dos mais antigos (Delgado, 1974:181). Na imprensa censurada, as notícias sobre esta visita omitiam «referências aos trabalhadores na berma da estrada, à enorme multidão junto à Casa do Gaiato, ao cortejo com duas centenas de automóveis» (Delgado, I. et al., 1998:84). Dirigindo-se depois à sede do concelho, a comitiva fora aí recebida pela GNR «com jeeps, capacetes e metralhadoras, a qual impediu a entrada do cortejo na cidade, apreendeu um altifalante e só autorizou a passagem dos carros do general e dos membros das comissões e o da [reportagem d’O Século]» (Ibid., idem). Levado em triunfo, largas centenas de pessoas aplaudiram o general junto aos Paços do Concelho, tendo-lhe sido oferecido um ramo de flores, que o candidato fez questão de colocar no monumento de homenagem aos combatentes da Grande Guerra. No regresso ao Porto, Delgado efectua paragem no centro de Paredes.
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Humberto Delgado em Penafiel (Foto Antony/Arq. Mun. de Penafiel) |
Citação: «Andava com amigos a correr atrás dos pássaros, particularmente os pintassilgos, muito abundantes naquele jardim e que exibiam nas penas uma mancha amarela que os tornava muito atraentes, quando ouvi o ruído de uma pequena multidão vindo do outro lado do jardim, junto à já referida estrada, que atravessava a vila. Fui a correr ver o que se passava e encontrei um ajuntamento, com talvez umas 50 pessoas, não mais, todas voltadas para um homem que gesticulava em cima de uma mesa. Era um homem alto, careca, que gritava não me recordo o quê com a cabeça muito erguida e que fazia muitos gestos com os braços. De súbito, e no meio de grande alarido dos presentes, muitos gritos e muitos gestos, o homem desceu da mesa, meteu-se no carro e partiu em direcção ao Porto. Disseram-me então que se tratava do general Humberto Delgado, que andava em campanha eleitoral, e que os democratas da minha terra, aqueles que não tiveram medo de sair à rua, foram saudar e desejar-lhe a vitória.»
Estas palavras são de Zeferino Coelho, prestigiado editor paredense, num texto autobiográfico publicado no Jornal de Letras («Vida de Editor», versão online, acesso 27/01/2022). Ficou assim narrado, na primeira pessoa, um episódio de interesse para a história local: o breve comício do «General Sem Medo» realizado na Praça de José Guilherme, em Paredes, no âmbito da campanha para as eleições presidenciais de 1958.
Com o título «A Visita ao Norte do General Humberto Delgado», uma notícia do jornal O Século, de 16 de Maio, narra o evento da seguinte forma: «Em Paredes, o cortejo estacou e [a pedido dos populares – este pequeno pormenor foi cortado pela censura] o sr. general saiu e foi para perto do ‘rink’ de patinagem, no Jardim Central, onde ouviu uma saudação que o Sr. Santos Graça [Grácio] lhe dirigiu, em nome dos democratas locais. Veio depois aos ombros de entusiastas, para o seu carro, e mais uma vez o cortejo se pôs em marcha, sempre no meio de clamorosas ovações.»
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Recorte do jornal O Século (16/05/1958) |
Esta versão sintética do comício foi publicada após a acção do «lápis azul», que fez omitir do texto o teor do discurso do general em Paredes. Na maquete censurada e hoje à guarda do Arquivo Nacional Torre do Tombo (Cortes de Censura de 'O Século', ref.: PT/TT/EPJS/A/2/237), pode ler-se que «o candidato, referindo-se à proibição que pouco antes haviam feito ao chegar a Penafiel e às eleições livres, frisou a vergonha que esses factos provocavam a um general que não roubou nada a ninguém e que se propõe garantir a liberdade do país (…)». Sobre a intervenção de António Augusto Santos Grácio, segundo a nota biográfica de uma recente homenagem da autarquia paredense, ela terá incluído a seguinte exclamação: «Meu General, estamos fartos de ditadura. O povo precisa de pão e liberdade.»
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Santos Grácio e Humberto Delgado (Foto Antony/Arq. Mun. Penafiel) |
O acto eleitoral estava agendado para dia 8 de Junho, domingo, abrindo-se as portas das secções de voto às 9h da manhã. A maior parte das assembleias encerraria entre as 12h e as 13h. Votariam aqueles que a lei – restritiva – permitia que votassem, ou seja, 15% da população portuguesa, segundo Manuel Braga da Cruz, (apud Ana Sofia Matos Ferreira, in História - Revista da FLUP, Vol. 9 n.º2, 2019) e, dentro destes, os que escapassem às manobras de eliminação cirúrgica dos cadernos eleitorais, levadas a cabo por «serviço diligente» dos autarcas.
Não houve actualização de cadernos durante décadas, permanecendo neles os óbitos, que contavam para a abstenção (Reis, 2019;25). Com a inibição dos analfabetos, e havendo altas taxas de iliteracia em Portugal (30% da população não sabia ler nem escrever), mais significativa se tornava a massa de ausentes. Por vezes, falsificavam-se também listas de eleitores inscritos, substituindo-se nomes de opositores por outros de fiéis ao regime. Este foi o ponto de partida da «eleição».
Como se não bastasse, no próprio dia 8, seria emitido um decreto que proibia a presença de delegados da Oposição nas assembleias de voto, circunscrevendo-se as operações do acto ao controlo governamental. Ainda assim, como veremos, em relatório posterior, o presidente da Câmara Municipal de Paredes e o chefe local da União Nacional reportariam ao Governador Civil que as secções eleitorais do concelho haviam sido «todas fiscalizadas pela oposição» (ADP, M1195 n.º2).
Não obstante a letra da lei não permitir (salvo requisição expressa do presidente da mesa e em caso de tumulto) a presença de elementos das forças da autoridade nos locais de voto e proximidades (art.º 57 do DL 37.570), foi posicionado estrategicamente, a título de «reforço policial» e sob o pretexto da «manutenção da ordem pública», um forte dispositivo policial e militar em vários pontos do distrito. A ordem dada às forças mobilizadas, segundo um documento marcado como «confidencial» do Batalhão n.º 4 da GNR (ADP, M1195 n.º2), era a de «reprimir com toda a energia qualquer tentativa de alteração da Ordem Pública que [pudesse] perturbar o acto eleitoral (…)», devendo, além do uso de «capacetes de aço», os «oficiais, sargentos e cabos irem armados de pistola metralhadora». Seriam também distribuídas às forças «granadas ofensivas de guerra e lacrimogéneas».
Para a área do concelho de Paredes, o citado documento escalonava as seguintes unidades e instruções: «As forças para Lordelo (Camião n.º C-57 da Comp.ª do Comando) marcham pelo seguinte itinerário: Porto – Valongo – estrada de Paços de Ferreira por Sobrado – Balsa – Corujeira – Lordelo, onde ficam as forças e o camião. As forças para Recarei e Paredes (Diamond C-16 do 2.º Esquadrão) marcham pelo seguinte itinerário: Porto – Valongo – Campo – Recarei (saem as forças para esta localidade) – Mouriz – Paredes onde ficam as restantes forças e bem assim a camioneta Diamond. Estas forças ao receberem ordem para retirar, fazem-no pelo itinerário inverso recolhendo as forças de Recarei.»
Independentemente da existência de acções que justificassem qualquer tipo de intervenção – o que acabou por não se verificar –, a simples presença ou trânsito de viaturas e homens fortemente armados no seio de localidades costumeiramente pacatas e rurais, não deixava de causar o devido e esperado impacto, propiciando-se um natural ambiente de medo e apreensão. Além dos fardados, havia sempre que contar com os discretos «paisanos» e «bufos», agentes da PIDE, ou simplesmente «informadores», que estavam de olhos e ouvidos atentos um pouco por toda a parte.
A julgar pelo relatório das autoridades locais, pelas actas e pela imprensa, o sufrágio eleitoral em Paredes decorreu sem incidentes ou perturbações. Os resultados apurados no total do concelho (segundo a tabela do Maço 1195 n.º2, ADP) deram vitória a Américo Tomás, com 72% (3165 votos) face aos 27,9% de Humberto Delgado (1226 votos). Votaram 4392 eleitores de um total de 5707 inscritos (incluindo alguns não inscritos, mas que tinham certidão de eleitor), o que fez situar a abstenção nos 23%. A surpresa veio mesmo do resultado de três das 24 freguesias do município, onde o candidato da Oposição derrotou o do regime. Foram elas Besteiros, Cete e Sobreira. Nota ainda para o resultado de Parada de Todeia, onde Américo Tomás venceu pela diferença mínima de apenas um voto (50 para 49).
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Quadro de resultados da eleição no Concelho de Paredes |
Os triunfos locais do general foram todos por escassa margem. Em Besteiros, Delgado recebeu 45 votos (51,7%) contra 42 de Tomás (48,2%). Votaram 87 dos 120 eleitores inscritos (27,5% de abstenção). Em Cete, verificou-se quase o mesmo cenário: Delgado obteve mais 4 votos do que o almirante, ou seja, 93 (51%) para 89 (48,9%). Entraram na urna 182 impressos dos 251 recenseados, pelo que a abstenção se situou nos 27,5%. Na Sobreira, a vitória da Oposição foi ligeiramente mais folgada. Humberto Delgado arrecadou 140 votos (58,5%), face aos 99 de Américo Tomás (41,4%). Votaram 239 de 393 eleitores inscritos, o que resulta em 39,2% de abstenção.
A vitória mais expressiva de Américo Tomás registou-se em Aguiar de Sousa, com 97 votos, face a apenas 3 de Delgado. A mais tangencial, como já referimos, foi em Parada de Todeia, por 50 contra 49 votos. O candidato da União Nacional teve ainda 93% em Duas Igrejas, e percentagens superiores a 80% em Astromil, Bitarães (assembleia composta pelas freguesias de Beire, Gondalães e Bitarães), Cristelo, Lordelo e Mouriz (Mouriz e Vila Cova de Carros).
A maior taxa de abstenção verificou-se em Aguiar de Sousa, onde 41,2% dos recenseados não foi votar. Em 2.º lugar, no que toca a absentismo, ficou a Sobreira, com 39,2% de ausentes. Isto significa que, na primeira, a abstenção parece ter beneficiado Américo Tomás, que teve aqui a maior vitória do concelho, e na segunda, o mesmo com Humberto Delgado, que teve na Sobreira o seu melhor resultado na circunscrição de Paredes.
A maior taxa de votantes foi registada em Cristelo, cifrando-se nos 86,7% de participação. Logo a seguir ficou Lordelo, com 86,1%, e depois Vilela e Bitarães, ex-aequo, com 85%.
Em todo o concelho, praticamente não houve votos considerados nulos. A excepção foi de apenas um, em Gandra. O voto em causa fora anexado à acta e trata-se de um documento de propaganda da U.N. de Paredes, no qual se apela ao voto no candidato do regime. Ao invés de levar um boletim que contivesse o nome de um dos candidatos, o eleitor depositou na urna o referido panfleto, sendo assim considerado voto nulo.
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Documento de propaganda da Concelhia de Paredes da União Nacional (ADP) |
Tendo por base informações chegadas «telefónica e telegraficamente» ao Ministério do Interior e citadas na obra de Adrião Cunha (2014:233), a votação a nível nacional foi a seguinte: Américo Tomás 765.081 votos (76,4%), Humberto Delgado 236.057 (23,5%). Deve acrescentar-se, porém, que nem estes nem outros quaisquer dados relativos às eleições presidenciais de 1958 chegaram a ser publicados em Diário do Governo, não havendo também «rasto do apuramento» no Supremo Tribunal de Justiça (Delgado, I. et al., 1998:495). Formal e legalmente, dir-se-á, estas eleições «nunca existiram».
Através de nota publicada na primeira página d’O Progresso de Paredes de 14 de Junho, e sob o título «A Lição das Urnas», a Comissão Concelhia de Paredes da União Nacional regozijava-se com o resultado: «O Concelho de Paredes mostrou mais uma vez o patriotismo e a sua dedicação e fidelidade a Salazar. E assim, em relação ao número de votantes, obteve o candidato da U.N. o Sr. Contra-Almirante Américo Tomaz a larga percentagem de 72,07, ao passo que o candidato da oposição Snr. General Humberto Delgado apenas a de 27,92. Esta a linguagem dos números, fria mas eloquente. Paredes, porém, votou de alma e coração. A concorrência às urnas foi enorme, e é consolador registar que as eleições fiscalizadas pela oposição em todas as Assembleias eleitorais, decorreram com absoluta ordem e correcção e com inteira liberdade quanto ao exercício do direito de voto. Na Assembleia da nossa Vila que este ano funcionou na Escola oficial, registou-se uma grande afluência, de eleitores entre os quais numerosas senhoras. Aqueles que supunham que com a guerra fria dos boatos afastavam a concorrência dos nacionalistas, enganaram-se redondamente. As palavras do nosso chefe Salazar – do seu último discurso, trouxeram-nos a tranquilidade e a certeza de que a ordem seria assegurada e que ao aceitarmos a luta no próprio campo do inimigo, podíamos e devíamos ir tranquilamente exercer o nosso direito de voto. “Não tenhamos receio” - Foram as suas últimas palavras! E assim foi. Por todo o país, com a mesma confiança e com a maior ordem por ele anunciada e assegurada, Portugal inteiro d’aquém e d’além mar, deu a Salazar a certeza de que está com ele na continuação da obra do ressurgimento de Portugal. Viva Portugal. Viva Salazar.»
Na mesma edição, o correspondente da freguesia de Cete, uma das três localidades onde o candidato da Oposição vencera, dava nota de que, apesar de ter sido «bastante mais movimentado do que era hábito em eleições anteriores, nem por isso o acto perdeu aquele cunho que deve caracterizar cometimentos de tal importância para a vida dos povos.» Quanto ao apuramento, o autor limita-se a fazer constar que «as eleições foram disputadíssimas e o resultado mostra bem essa evidência». Após enumerar os votos de um e de outro candidato, o cetense entende laconicamente que «não deve fazer comentários pois, como é óbvio, o facto deriva de muitas circunstâncias sempre muito difíceis de pôr à luz da assimilação dos homens.»
Ainda nesta localidade e em face do embaraçoso resultado, a Junta de Freguesia entendeu, por certo como forma de desagravo oficial, «consignar na acta um voto de profunda admiração pela grandiosa obra de Salazar, desenvolvida em prol do País há 30 anos, sem desfalecimento nem desvios de orientação.» A autarquia reiterava «àquele eminente estadista a sua lealdade e firme propósito de colaboração», sublinhando o «quanto [era] grata para com o Timoneiro da nossa querida Pátria» (O Progresso de Paredes, 14/06/1958).
Também o correspondente da Sobreira do mesmo jornal, parece enviar uma mensagem subliminar aos leitores. Evitando as suas próprias palavras e, naturalmente, fintando alguma eventual responsabilização, resolve citar um artigo d’O Comércio do Porto que, segundo diz introdutoriamente, «foi muito apreciado e meditado n’esta região». Aí é descrito um contexto que «pôs a nu imperfeições ou erros susceptíveis de emenda ou correcção» e que «não as admitir ou consentir, é negar a própria evidência». O texto invoca a necessidade de se olhar para «tantos sectores de actividade [que] vivem não só em deploráveis condições de carência e de desconforto, como desprovidas de protecção de qualquer espécie.» É ainda sublinhado que «o descontentamento que se observa em diversos sectores da Nação e que sobremaneira pesou e afirmou a sua presença iniludível nos acontecimentos políticos, traduz um mal estar a que urge fazer frente, com medidas adequadas e perfeito sentido das realidades.» A terminar, o correspondente, que assina com as iniciais «J. M. C.» refere: «Porque o Jornal não é nosso, limitámo-nos apenas a transcrever estes períodos, sem comentários, por se tratar de matéria aplicável a esta nossa região» (Idem).
Nos dias que se seguiram ao acto eleitoral, o regime, seus dirigentes, propagandistas e seguidores, embandeiraram publicamente o vitorioso resultado da candidatura de Américo Tomás. Propagandearam o triunfo da «ordem» sobre a «rebelião», da «fé católica» sobre o «ateísmo», dos «salvadores da Pátria» sobre a «infâmia oposicionista», de Salazar sobre Delgado, mas, no fundo, da férrea ditadura sobre a abertura democrática.
Porém, a nível interno, o governo que construiu «a mentira» procurou conhecer «a verdade». Com o fito de reportar as conclusões directamente ao Ministro do Interior, o Governador Civil do Porto enviou uma circular confidencial aos presidentes de Câmara do seu distrito, na qual solicitava «um relatório, tanto quanto possível circunstanciado da forma como decorreu a eleição presidencial nesse concelho, por freguesias e assembleias, especificadamente, informando das causas de ordem geral ou local que, porventura, tenham influído nos resultados.» Os pontos concretos a saber diziam respeito a «comissões de propaganda da oposição, com sede no concelho ou em freguesias, pessoas que as constituíram e sua importância local; trabalhos efectuados por essas comissões e meios de actuação que adoptaram; pessoas que, sem fazer parte de comissões, se salientaram na actuação junto do eleitorado; papel dos órgãos da imprensa local e sua tendência anterior à eleição; possíveis motivos determinantes da votação dos vários sectores do eleitorado em favor do candidato da Oposição, seu significado e circunstâncias locais; como se revelou a acção das mesas das assembleias eleitorais; como decorreram os trabalhos das assembleias; em que assembleia houve fiscalização e como actuou; dificuldades possíveis encontradas na obtenção do eleitorado a favor do candidato da União Nacional; possíveis deserções e seus motivos; colaboração ou actuação desfavorável das fábricas, professores, médicos e outros influentes locais» (ADP, M1195 n.º2).
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O presidente da CM Paredes e o chefe local do partido único fizeram, a pedido do Governador Civil, um relatório acerca das incidências do acto eleitoral (ADP) |
O relatório referente a Paredes está assinado pelo presidente da autarquia, Augusto Moreira Teixeira de Barros, e pelo presidente da Comissão Concelhia da União Nacional, João Augusto Rodrigues de Sousa Machado. Depreende-se, portanto, uma posição de conjunto, ou comum. Transcrevemo-lo na íntegra em seguida:
«Neste concelho de Paredes o acto eleitoral decorreu na melhor ordem em todas as assembleias de voto, assembleias estas que foram todas fiscalizadas pela oposição. A concorrência de eleitores foi enorme. O eleitorado feminino compareceu na sua maior parte, sendo poucas as mulheres que faltaram. A importância do eleitorado feminino é grande, pois constitui uma força conservadora com que se pode contar. Houve nesta Vila dois casos de duas senhoras casadas com maridos que pertenciam à oposição, as quais foram dar o seu voto ao candidato da União Nacional. Impõe-se uma modificação na lei eleitoral no sentido de ampliar o direito de voto às mulheres. *** É necessário também salientar que foi muito grande a influência do clero nos eleitores católicos. Nos meios rurais, o pároco tem uma grande influência no espírito dos seus paroquianos. Tendo a U.N. deste concelho dirigido um pedido aos párocos de todas as freguesias para orientar a conduta do eleitor católico, todos eles proferiram nas homilias, verdadeiras lições sobre o exercício do direito de votar. Fizeram-no de alma e coração. É uma força que nunca se deve desprezar *** A oposição, aqui chefiada por três pessoas, exerceu grande actividade não só no largo uso da propaganda, mas também nas visitas às freguesias que foram por eles feitas sobretudo de noite. Exploravam eles as causas de descontentamento fazendo promessas aliciantes, embora enganosas. Das 24 freguesias que compõe o nosso concelho apenas obtiveram maioria em três: Em Besteiros 3 votos; em Cete 4 e na Sobreira 41. A razão destas pequenas vitórias locais devem fundar-se em casos de descontentamento pessoal d’alguns meneurs. Em Besteiros, por exemplo, o que mais se interessou pela oposição fundamentava a sua atitude no facto de não poder suportar os Grémios, porquanto tendo um dia necessidade de adquirir determinada quantidade de batata semente, encarregou o Grémio da Lavoura de lha arranjar, depositou o dinheiro e passado algum tempo o Grémio devolveu-lhe o dinheiro e não lhe arranjou a batata! É sabido que o nosso lavrador é estruturalmente individualista e como tal rebelde à “associação”. Já Ramalho Ortigão no seu magnífico livro “Holanda” salientou esta característica do povo português com mão de mestre. Sabemos que a organização corporativa necessita de largos anos para se aperfeiçoar tal a complexidade dela. Quanto aos Grémios da Lavoura há na verdade deficiências a suprir e defeitos a corrigir. A Federação dos Grémios criou por vezes a estes situações difíceis. Um exemplo: a Federação atribuiu aos Grémios os contingentes de batata semente nacional e estrangeira, obrigando os Grémios a adquirir batata nacional que nesta região ninguém compra porque a não conhece e a preço superior ao da semente estrangeira. Quanto ao sulfato de cobre outro problema delicado se levanta. O preço do sulfato de cobre nacional sofre tantas alterações em cada campanha que os Grémios, que compram sulfato estrangeiro, nunca sabem se terão ou não prejuízo nas vendas. Impõe-se o tabelamento no princípio da campanha agrícola dos preços deste produto, como aliás existe para tantos outros. Outra causa de descontentamento é a situação do trabalhador rural. Na verdade, esta situação é tão precária que bem merece dos poderes públicos medidas rápidas de protecção, de forma a ficarem equiparados nas regalias aos operários das oficinas, a fim de se evitar o êxodo destes trabalhadores para as cidades, em massa, excedendo os limites normais do fenómeno económico do urbanismo e originando a falta de braços para a lavoura, mal que já sofremos. Contudo, e apesar do seu descontentamento o trabalhador rural ainda é o mais resignado e o mais conservador de todos os trabalhadores portugueses. *** Em Cete e na Sobreira abundam os ferroviários, classe que, antes do 28 de Maio era uma classe indisciplinada, com greves contínuas, algumas delas revolucionárias, e que nunca se adaptou bem à ordem e disciplina do Estado Novo. Acresce que em Cete teve larga preponderância um influente político democrático, que, falecido há anos, deixou por lá muitos adeptos dessa democracia, para nós de triste memória. Na Sobreira verificou-se um caso esporádico de traição por parte de um influente nacionalista local, o que deve ser a causa que originou a maioria verificada a favor do candidato da oposição. Há também o descontentamento de parte do funcionalismo público. Os ajudantes dos Cartórios Notariais, das Conservatórias, do Registo Civil, Copista e Escriturários, Aspirantes e equiparados, estão na verdade mal pagos. Com família para sustentar, filhos para educar, e tendo de exercer os cargos sem dependências e com aprumo e seriedade, têm de sofrer privações com o que actualmente ganham. Na verdade esses ordenados precisam de ser actualizados numa justa medida. Apesar de tudo, Paredes continua a ser um concelho conservador e católico com que o governo de Salazar pode contar. O Presidente da Câmara Municipal, dr. Augusto Moreira Teixeira de Barros. O Presidente da Comissão Concelhia da U.N., dr. João Augusto Rodrigues de Sousa Machado.»
Verifica-se, neste relatório, uma curiosa menção ao voto feminino, aqui considerado aliado eleitoral do regime. Logo a seguir, é referido que «foi muito grande a influência do clero» junto dos católicos. Os dois pontos estão intrinsecamente relacionados. Não vem a despropósito lembrar uma das principais razões pelas quais os primeiros republicanos obviavam o voto às mulheres. Para eles e também para elas – incluem-se aqui as ‘sufragistas’ militantes do Partido Republicano –, «enquanto a mulher, através da instrução correcta, não se assumisse como um sujeito autónomo e racional (…), isto é, se não se emancipasse da tutela do padre, o seu voto [só] iria fortalecer a reacção» (Catroga, 2010 [1911]:181). Os tempos pareciam, assim, de algum modo, encaixar no argumento dos precursores do regime implantado em 1910.
Sobressaem também as justificativas das autoridades locais para as três derrotas do candidato do regime neste concelho. Em Besteiros, atribuiu-se o resultado à insatisfação com o Grémio da Lavoura. Em Cete, à indisciplina crónica dos ferroviários e à influência de um político já falecido. Na Sobreira, igualmente ao carácter rebelde dos trabalhadores da ferrovia, bem como à «traição» de um nacionalista da terra. Para além disso, é no final sublinhado o descontentamento que grassava entre os funcionários públicos e que eram, em geral, «mal pagos».
De facto, nesta altura, e apesar da censura vigente, os jornais não passavam ao lado de todos os problemas sentidos pela população. De alguns ficava mesmo registo e até como parte da reivindicação. Precisamente na Sobreira, além de ferroviários e de um «traidor», havia também graves problemas em relação a um bem essencial da alimentação: o leite. Uma notícia d’O Progresso de Paredes de 7 de Junho de 1958, véspera, portanto, do acto eleitoral, dava conta do «sério alvoroço» surgido entre os produtores locais em resultado de repentinas alterações negativas ao preço tabelado do leite. Uma das principais compradoras do precioso líquido aos agricultores locais, era a Sociedade de Lacticínios de Valpedre, que praticara o preço do leite em 1$50 por litro até inícios de Março. Porém, na segunda quinzena, já só pagava a 1$40 e no mês de Abril «à razão de 1$14», o que representava um embaratecimento de 24% em poucas semanas.
O recenseamento, a campanha, a logística, a votação, o escrutínio, tudo, ou quase tudo nestas eleições teve carácter fraudulento. Até os próprios membros do regime pareciam pouco confortáveis com a enormidade da farsa. A começar pelo próprio vencedor, o candidato que Salazar escolhera para seu títere político. Américo Tomás não votou no acto a que ele próprio concorreu. O motivo nunca foi conhecido.
Nítidos e fundados receios acerca da deriva democratizante aberta por toda esta conjuntura, fizeram com que o ditador alterasse rapidamente as regras do jogo. Uma apressada revisão constitucional, operada logo no ano seguinte, fez com que, a partir de então, os presidentes da República passassem a ser eleitos não por sufrágio directo, mas por via de um colégio eleitoral de fiéis do regime (Assembleia Nacional e Câmara Corporativa). O governo de Oliveira Salazar que como nunca estivera tão próximo de sofrer um «golpe de estado constitucional», não podia voltar a sujeitar-se a «aventureirismos eleitorais», nem sequer ao carácter vexatório de manipulações por demais evidentes.
Apesar dos resultados menos bons em três freguesias e dos laivos de insatisfação latentes, a Situação, a nível local, voltara a impor-se. A «ordem» estava garantida. No relatório conjunto do presidente da Câmara e do chefe concelhio do partido único, havia apenas uma conclusão a retirar: «Paredes [continuava] a ser um concelho conservador e católico com que o governo de Salazar [podia] contar.»
O «furacão Delgado», como lhe chamou Jorge Fernandes Alves, passou por Paredes, como por todo o país e fez, de facto, alguns estragos. Mas não ainda os suficientemente necessários para derrubar o que precisava ser derrubado. Após as eleições, acusado de conspirações várias, Delgado partiu para o exílio. Em 1965, atraído para uma cilada orquestrada por elementos da PIDE, o general sem medo é barbaramente assassinado. Faltavam ainda nove anos, para que a «longa noite», desse lugar ao «dia inicial inteiro e limpo».
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Fontes primárias:
Actas das Eleições Referentes ao Concelho de Paredes (1958), Arquivo Distrital do Porto (ADP)
Cortes de Censura de 'O Século', Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT)
Maço 1195, Eleições Presidenciais de 1958, Arquivo Distrital do Porto
Jornal de Letras
Jornal O Progresso de Paredes
Jornal O Século
Bibliografia:
ALVES, Jorge F. O Furacão Delgado e a Ressaca Eleitoral de 1958 no Porto. Porto: CLC-FLUP, 1998.
CATROGA, F. A Laicização do Casamento e o Feminismo Republicano. Coimbra: Coimbra Editora, 1986.
COSTA, Cristiano M. (coord.) et al. Presidentes da Câmara Municipal de Paredes 1837-2017. Paredes: Município de Paredes, Setembro de 2017.
CUNHA, Adrião. Humberto Delgado: Nos Bastidores de uma Campanha. Porto: Ed. Afrontamento, 2014.
DELGADO, Iva, PACHECO, C. e FARIA, T. (coord.) et al. Humberto Delgado: As Eleições de 58. Lisboa: Vega, 1998.
DELGADO, Humberto. Memórias. Lisboa: Delfos, Setembro de 1974.
FERREIRA, Ana. O sistema eleitoral no Estado Novo: o papel do Presidente da República na estabilidade ou na ruptura do regime criado pela constituição de 1933 in HISTÓRIA, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. IX, n.º2. Porto: FLUP, 2019.
PROCLAMAÇÃO do General Humberto Delgado Candidato à Presidência da República. Serviços de Candidatura do Porto, 1958.
REIS, Joana. Uma Campanha Americana: Humberto Delgado e as Presidenciais de 1958. Lisboa: Tinta da China, 2019.
SANTOS, Manuel C. Quando o Porto tinha voz. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, Maio de 2013.
SILVA, Ivo R. Paredes e a Primeira República. Paredes: Câmara Municipal de Paredes/CEI-ISCAP, 2020.
SILVA. Ivo R. Paredenses na Grande Guerra: 1914-1918. Paredes: Câmara Municipal de Paredes/CEI-ISCAP, 2017.
Fotografias de Humberto Delgado em Penafiel:
Espólio Casa Comercial Foto Antony, Arquivo Municipal de Penafiel (AMPnf)
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