O Encerramento das Minas de Lousa de Valongo: Uma Tragédia Social em Recarei em 1939
Na segunda metade do século XIX, mais concretamente por volta de 1865, uma sociedade de investidores britânicos decide apostar na extracção de metais, minerais e na exploração de lajes e ardósias do solo e subsolo do concelho de Valongo. É fundada a empresa «The Vallongo Slate & Marble Quarries Company, Limited», com sede em Londres e zona de extracção industrial sobretudo no concelho valonguense, mas também em Penafiel (Serra da Boneca).
A exportação para Inglaterra e Estados Unidos tinha peso maioritário no volume de negócios, tendo o sector sido gravemente afectado pelas consequências da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Porém, seriam os efeitos do crash bolsista de 1929 a significar o fim da presença inglesa na exploração lousífera da região. Em 1930, o activo e passivo da companhia seriam adquiridos pela recém-criada Empresa das Lousas de Valongo (ELV), que, apesar das várias vicissitudes e alterações de proprietário, se manteve em actividade durante décadas, subsistindo em laboração nos dias de hoje.
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Aspecto das minas de lousa de Valongo (Clichê de J. Saldanha, Of. O Comércio do Porto) |
Com o desencadear do segundo conflito mundial (Setembro de 1939), os problemas voltam a ensombrar o comércio da extracção da «pedra escura», não sem causar um impacto social e económico muito significativo na região. A ELV parece ressentir-se da guerra bastante cedo, vendo-se na contingência de parar ou reduzir drasticamente a laboração em Outubro de 1939, ou seja, logo no mês seguinte ao da invasão da Polónia pelo exército do Reich.
Neste contexto, largas dezenas de trabalhadores das referidas minas são atirados para o desemprego. Sem amparo ou protecção de qualquer espécie, ficam de imediato sem sustento para si próprios e respectivas famílias.
Um abaixo-assinado de 60 desses operários, todos residentes na freguesia de Recarei, fora então dirigido ao presidente da Junta local. O documento é, por si só, elucidativo. Homens que imploravam «protecção» e que, traduzindo o seu desespero, diziam às autoridades que, se nada fosse feito, os seus filhos «morreriam de fome». Transcrevemo-lo, em seguida, na íntegra (Livro de Reg. de Correspondência, Arquivo da J.F. de Recarei):
«Ex.mo Sr. Presidente da Junta de Recarei
Nós abaixo assinados moradores na freguesia de Recarei e trabalhadores nas minas de lousa no vizinho Concelho de Valongo vimos muito respeitosamente pedir a V. Ex.cia a sua valiosa protecção para o caso presente; visto que sempre tem sido a única autoridade dentro do Concelho de Paredes e desta freguesia que tem procurado defender os nossos interesses com zelo e dedicação para que nos possa garantir pão para nós para nossos filhos e mulheres. Encontram-se encerradas as minas em que trabalhamos deixando-nos a todos na mais crítica situação e não se respeitando nem tendo considerações os nossos filhos; que morrerão de fome se as Ex.mas autoridades superiores com medidas urgentes e severas não resolverem este assunto de tão grande importância. Mas confiados na protecção da Junta desta freguesia de que V. Ex.cia é muito digno Presidente resta-nos essa esperança que não será em vão que a V. Ex.cia nos dirigimos. Por isso mais uma vez esperamos de V. Ex.cia a mesma protecção para aqueles que do trabalho querem viver. Recarei, 15/10/1939.
Joaquim Teixeira de Magalhães, casado, 5 filhos.
Aureliano Nogueira Pinto, casado, 4 filhos.
Luís António Ferreira Pinto, casado, 5 filhos.
Martinho da Costa, casado, 2 filhos.
José Barbosa Leão, casado, 2 filhos.
José Alves Nogueira, casado, 4 filhos.
Joaquim Ferreira, casado, 8 filhos.
Daniel Moreira Martins, viúvo.
Luís António Moreira Sousa, solteiro
Arnaldo Carlos da Silva, casado, 2 filhos.
Domingos de Sousa, casado, 4 filhos.
Graciano Ferreira, casado, 2 filhos.
Jeremias Alves Nogueira, casado, 3 filhos.
Moisés Marques, casado, 3 filhos.
José da Costa, casado, 5 filhos.
Bento da Silva, casado, 1 filho.
José Dias de Sousa, casado.
José Nunes, casado, 2 filhos.
António Nunes, casado, 3 filhos.
Augusto de Sousa, casado, 4 filhos.
Constantino Dias de Sousa, casado, 3 filhos.
Custódio de Sousa, casado, 1 filho.
Abílio Nogueira, casado, 5 filhos.
Joaquim de Sousa, casado.
José Rodrigues da Silva, casado, 5 filhos.
Manuel Gomes, solteiro.
Bonifácio Dias, casado, 3 filhos.
António da Rocha Fernandes, casado, 2 filhos.
José dos Santos Alves, casado, 2 filhos.
Venâncio Diamantino Nogueira, solteiro.
Delfim de Sousa Dias, casado, 2 filhos.
Bernardino de Almeida, casado, 2 filhos.
Cipriano Dias, solteiro.
Alberto de Sousa, casado, 3 filhos.
Justino Dias de Sousa, casado, 7 filhos.
Adriano Rodrigues da Silva, solteiro.
António Marques, casado.
Delfim da Rocha, solteiro.
José Ventura Rodrigues, solteiro.
Alexandrino Alves Nogueira, casado, 4 filhos.
José de Sousa Dias, casado.
Manuel Morais, solteiro.
José Cerqueira da Cunha, solteiro.
Gabino Ribeiro, casado, 3 filhos.
Augusto Moreira Barbosa, solteiro.
Alexandrino de Sousa Dias, casado, 6 filhos.
Luís José dos Santos Alves, casado, 2 filhos.
Albano Soares Magalhães, casado, 6 filhos.
António Barros, casado, 9 filhos.
Delfim Coelho do Carmo, solteiro.
Belmiro Moreira, casado, 3 filhos.
Manuel Moreira, casado, 3 filhos.
Adão Moreira, casado, 2 filhos.
Delfim Moreira, casado, 2 filhos.
Belmiro Nogueira, casado, 3 filhos.
Agostinho Gonçalves, casado, 1 filho.
Augusto Ferreira, casado, 4 filhos.
Manuel da Cunha, casado, 5 filhos.
Alberto Cabral, casado, 4 filhos.
Cipriano Martins Coelho, casado, 3 filhos.»
Destes 60 operários, 48 eram casados, um era viúvo e onze eram solteiros. O número total de filhos, crianças ou jovens a cargo destes homens era de 154. Se à cifra de desempregados e filhos somarmos as respectivas esposas, temos um conjunto de 262 pessoas da mesma freguesia afectadas directamente pelo encerramento das minas de lousa. Naquela altura, tal número significava 13% da população recaredense, segundo os censos do ano seguinte (1940). Este total não contempla hipotéticos, mas adivinháveis, efeitos indirectos, como eventuais idosos a cargo, ou até dificuldades provocadas a outros familiares, que se viam na contingência de abdicar do pouco que tinham para ajudar aqueles que agora ficavam, repentinamente, sem quaisquer meios de subsistência.
Talvez não seja totalmente alheio a esta situação – embora também não seja possível estabelecer uma relação directa efectiva –, o verificado aumento da mortalidade infantil, em Recarei, nos anos seguintes. Em 1939, tinham falecido 17 menores, número que, após uma inflexão para 11 em 1940, subiu para 19 em 1941 e para 24 em 1942. Há mais de trinta anos (27 em 1909) que a localidade não via morrer tantas crianças ou jovens com menos de 18 anos de idade. Logo após o término da guerra, em 1946, morreriam somente quatro menores na freguesia.
Fonte primária:
Livro de Registos de Correspondência, Arquivo da Junta de Freguesia de Recarei.
Bibliografia:
GUEDES, Cardoso e LEITE, Alexandre. Louseiras de Valongo: Um Pouco da Geologia, História, Extracção e Transformação da Ardósia. Texto em PDF. Porto: FEUP, 2022.
ROCHA, Pedro. S. Martinho do Campo: a Mina e a Banda. Notas sobre um percurso identitário. Dissertação de Mestrado de Mestrado em Património, Artes e Turismo Cultural da Escola Superior de Educação (ESE) do Instituto Politécnico do Porto (IPP). Acedido em Maio de 2023 em: https://recipp.ipp.pt/handle/10400.22/14491
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