José Guilherme e a Administração em Paredes: As «Sombras»

Em 2021, a passagem do bicentenário do nascimento de José Guilherme Pacheco potenciou a sua rememoração histórica e biográfica. Como é regra neste tipo de eventos, as comemorações e/ou celebrações encerraram-se em si mesmas, não se aproveitando a ocasião para uma reanálise histórica rigorosa da biografia do visado. Foi por isso sem causar surpresa que superabundaram textos panegíricos e essencialmente celebrativos, ainda que da autoria de académicos da área da História, concebidos de princípio a fim para secundar e reafirmar qualidades e méritos, sendo uns reais e outros, dizemos nós, imaginários. Portanto, o resultado foi o de sempre: a reafirmação furtiva de uma imagem impoluta de José Guilherme, de «regência absoluta» local, despida de roupagens negativas, de oposições e/ou contestação.

Na recente reedição fac-similada da Monografia de Paredes, um texto introdutório refere-se à «alma» de Guilherme como repousando no mausoléu ainda «cheia de luz e bondade». Sucede, porém, que, como é sabido, onde há «luz» há «sombras».

Contrariamente à ideia geral hoje estabelecida, o unanimismo em torno da figura de José Guilherme trata-se de uma construção e uma realidade contemporânea tardia (segunda metade do séc. XX), que não existia no seu tempo, como aliás atestam algumas raras (mas existentes) fontes historiográficas que invocaremos no presente artigo. É importante recordar ainda que a «Primeira República» não permitiu o levantamento da sua estátua, apesar de ter sido aprovada a cedência de terreno para a mesma, tendo na altura chegado à Câmara reclamações duras (até recusadas por conterem termos impróprios) e abaixo-assinados de dezenas de paredenses contra a homenagem que se pretenderia efectuar (Silva, 2020:162 e ss.).


Contudo o que há, ou tem havido, é uma monografia «única» (Monografia de Paredes, José do Barreiro), na qual tem assentado toda a «história oficial» do concelho. O que lá se postulou foi uma «verdade» inquestionada e incontestada ao longo de todo este tempo, num quadro de ausência absoluta de outras obras monográficas dedicadas à história de Paredes. O que há, ou tem havido, ainda, aqui e ali, é biografias explícita ou implicitamente celebrativas (como a de Carmindo Maia), e na esteira de Barreiro, pouco preocupadas em confrontar a tese à antítese, metodologia sem a qual, de resto, não existe uma síntese, ou uma resposta dialéctica com validade científica.

Paredes sem Lei nem Justiça

Comecemos então pelo teor de um opúsculo intitulado Aos Poderes Públicos, sem indicação de autor, impresso na Tipografia do Jornal de Lisboa, com data estimável de publicação de 1867/68. O objectivo do manifesto aparece elucidativamente plasmado na primeira página: «Dá-se a conhecer o lastimoso estado em que está o concelho de Paredes, círculo eleitoral de que é representante o sr. ministro do reino Martens Ferrão, e em que governa absolutamente o seu particular amigo e seu ex-delegado no governo civil de Angra, o sr. dr. José Guilherme Pacheco». Mais adiante, afirma-se o seguinte: «O sr. José Guilherme Pacheco, o agente eleitoral e íntimo amigo do sr. ministro do reino, João Baptista da Silva Ferrão de Carvalho Martens, manda ali as autoridades como senhor, e como senhor faz exigências para o governo civil; o sr. José Guilherme Pacheco trata Paredes como país conquistado, e dispõe do município, de cuja administração é presidente, como de propriedade sua. Em Paredes não há lei nem justiça; reina a paixão e o interesse do sr. José Guilherme Pacheco e dos do seu corrilho.»

Em seguida, o folheto reproduz uma carta enviada por Camilo Cândido Moreira Lobo, advogado, antigo administrador do concelho (f. em Besteiros em 24/01/1889), ao então ministro da Justiça, Augusto César Barjona de Freitas, com data de 14 de Setembro de 1866. Nela se alude ao comportamento de José Guilherme, nomeadamente quanto a interferências deste junto do juiz ordinário de Paredes, que, por sua vez, teria agido sob seu mando ou influência. A questão propriamente dita – uma acusação do crime de associação de malfeitores interposta por Guilherme a Camilo Lobo, ao escrivão do juízo e a um sacerdote – tivera, segundo o acusado, motivações de natureza política, sendo que, na altura, Camilo era adversário do «rei de Paredes».

Entre as várias incidências processuais deste caso, viria a ser aplicada uma multa ao futuro conselheiro. Sucedeu, porém, que essa multa nunca chegou a ser executada pelo oficial, pois «não havia oficial que se atrevesse a intimar ao agravado a sentença, (…) porque tendo a consciência de que por isso caía no desagrado do agravado, e conseguintemente do sr. juiz, que àquele devia a sua eleição, e esperava dever as futuras, temia as consequências de semelhante passo». Tendo sido feita queixa posterior contra o dito oficial, surgira depois um requerimento de José Guilherme, alegando o «extravio» do agravo. Segundo Camilo Lobo, o motivo pelo qual se «fingira» a perda do documento fora o de evitar a subida do processo a uma 2.ª instância judicial, ou seja, para fora de Paredes, onde Guilherme teria maior dificuldade em exercer influências. Todavia, o caso sobe mesmo à Relação, ainda que só três meses após o pedido, alegadamente também devido a acções de protelamento da parte do próprio José Guilherme. A relação não absolve os acusados e condenados em primeira instância, tendo o caso seguido para o Supremo onde, aí sim, viria a ser anulada a sentença inicial e, segundo Camilo, cortada «com a espada de Themis a cabeça da hydra nascida em Paredes» (op. cit.:19).

Posteriormente, com data de 22 de Fevereiro de 1867, o mesmo Camilo Lobo escreve ao Jornal do Porto, sendo a missiva publicada na sua edição n.º 49. Nela surge mais uma grave acusação a Guilherme, nomeadamente a de ter comprado uma testemunha detida, prometendo restituí-la à liberdade, testemunha essa que teria sido ainda sujeita a procedimentos de tortura: «Eis aqui, sr. redactor, os modos porque o sr. José Guilherme procura as provas para incriminar-nos! A uns obriga-os a tortura; a outros acena-se-lhes com um emprego público» (op. cit.:33).

Em 1871, uma publicação de adversários políticos de José Guilherme denunciava a sua gestão, comparando as contas do seu exercício com as de exercícios anteriores

A Ave de Arribação que Aí Veio Pousar

Para além de questões de natureza processual, há também acusações políticas relacionadas com a administração camarária: «A câmara municipal, presidida pelo sr. José Guilherme, tem-se servido até das atribuições que as leis fiscais lhe conferem na derrama das contribuições industriais, para proteger os compadres, e calcar os adversários! E a tanto chega a desfaçatez e amor de vingança, que os arautos do sr. José Guilherme não duvidam dizer publicamente, que enquanto em Paredes ditarem a lei, hão de continuar a esmagar os contrários! E note-se que um dos homens que assim fala é o Sr. Joaquim de Meireles, administrador substituto deste concelho, 1.º substituto do juiz ordinário, mestre escola (licenciado por falta de saúde), ex-vogal da câmara municipal, membro da direcção da comissão política do dito concelho; etc. etc.» (op. cit.:34). Logo a seguir, o autor interroga e conclui: «será permitido por nossas leis que o sr. José Guilherme vá à cadeia pespegar num preso duas dúzias de palmatoadas, como não há muito praticou? (…) Não é; certamente não; mas isto faz-se em Paredes, onde a lei é a vontade e o capricho de um homem!» (ibid., idem).

Numa outra publicação intitulada Exposição e Convite aos Povos do Concelho de Paredes: Particularmente aos que constituem as assembleias eleitorais de Recarei e Vandoma, datada de 1868 e da autoria do padre José Joaquim Leite de Bragança (n. Cete 10/09/1817 – f. Vandoma 26/02/1895), são feitas igualmente considerações bastante severas sobre José Guilherme, sobre a sua facção política e sobre a respectiva administração municipal. Lê-se logo no primeiro parágrafo do documento: «A história do concelho de Paredes mostra que quem tudo manda sempre aqui em assuntos de administração municipal é uma facção de Paredes mesmo: facção constituída principalmente pelos empregados que ali residem, porque a vila de Paredes não tem pessoas de representação e valor que influam em coisa alguma fora de lá, exceptuando o dr. José Guilherme Pacheco, o qual porém não é de Paredes, nem possui ali coisa alguma, nem mesmo uma casa de aluguel, pois que tem vivido e vive na casa da câmara sem pagar renda, segundo é público» (op. cit.:5). Depois de criticar a governação dos correligionários e amigos do conselheiro, o autor afirma ainda o seguinte: «A facção de Paredes, é necessário que se saiba, está resumida em dois homens: o dr. José Guilherme, ave de arribação que aí veio pousar, e que se tem elevado nas asas do embuste e da impostura, e o mestre-escola de Sobrosa, Joaquim de Meireles, aquele presidente da câmara, este juiz ordinário e substituto do administrador; tendo ambos às suas ordens o administrador efectivo Araújo Cabral, e uma pouco numerosa criadagem de empregados ou aspirantes a empregos, e de pessoas ligadas à facção por interesses mais ou menos ilegais» (op. cit.:19).

Ainda sobre os fiéis «guilhermistas», o padre José Bragança interroga-se de forma retórica: «Ora, quem são esses homens, que aí estão dominando assim o concelho, e explorando-o em todos os sentidos? Como é que homens sem haveres, o principal deles [referência a José Guilherme] não tendo fonte conhecida de meios de existência visto não levar há muitos anos dinheiro pelos trabalhos do seu ofício, ostentam de advogados e procuradores desinteressados e gratuitos do concelho? Não sabem que a prova da moralidade e honestidade da sua vida como homens públicos se tira de um simples facto acontecido com um deles, visto que, o que é um, é outro, visto que são duas almas num corpo, tanto que quando José Guilherme está ausente, Joaquim de Meireles vem tomar o lugar dele no palácio de Paredes, e lá come e lá dorme? O facto aludido é este. O mestre-escola Joaquim de Meireles há muitos anos que não dá escola, mas recebe a maior parte do ordenado anual. Está dado como doente, está doente para dar escola; mas não está doente para ser juiz ordinário e substituto do administrador nem para passar a sua vida, como passa, em correrias pelo concelho de pau na mão, lidando em todos os negócios e enredos políticos, administrativos, judiciais e outros, em que esses dois personagens andam sempre metidos» (op. cit.:20-21).

Um Rei Absoluto

À volta dos elogios e rótulos associados localmente a José Guilherme, sobressai sempre a do «rei absoluto», mas empregando-se à expressão um conceito de domínio natural e incontestável, dado ser «absoluta» a aura de supremacia moral, ética e política do visado, como se todo o concelho – da política à justiça e aos negócios locais - se curvasse, indiscutivelmente, perante tão magnificente ser humano. A ideia foi propagandeada e ilustrada de vários modos, entre eles por um diálogo apócrifo – para não dizer escandalosamente inventado – segundo o qual Guilherme teria um dia dito ao Rei D. Luís algo como isto: «V. Ex.cia é Rei constitucional mas em Paredes eu sou Rei absoluto» (Paredes Jóia do Sousa, s/d:145).

Pintura de José Guilherme Pacheco exposta no Salão Nobre municipal

Contudo, a partir da óptica de alguns dos contemporâneos do «janízaro», talvez fosse mais adequado falar-se de um rei «absolutista», do que propriamente de um político de qualidades «absolutas». Isso implicaria, desde logo, ter presente o conceito de «absolutismo» naquele exacto contexto histórico, altura em que estavam ainda bem vivas e bem vincadas as dissonâncias entre as duas formas de regime que, como é sabido, se haviam guerreado fatalmente entre 1828 e 1834. A doutrina política segundo a qual um só homem providencial - o monarca – deveria concentrar discricionariamente todo o poder nas suas mãos - político, legislativo, executivo e judicial -, acabaria superada pela forma liberal de poder régio, onde pontificava já uma ideia de separação de poderes, por sua vez encarnada e executada por D. Pedro IV e seus imediatos sucessores. É certo, porém, que o liberalismo não acabou com os absolutistas – ou com políticos com tiques de antigo regime –, da mesma forma que, posteriormente, a República também não acabaria com os monárquicos, ou sequer a Democracia com os fascistas.

Será de todo em todo arriscado, ainda assim, considerar-se José Guilherme um «absolutista» em sentido doutrinário e ideológico, até pela complexidade que envolveria tal afirmação. Porém, se olharmos ao que nos relata Camilo Lobo (Aos Poderes Públicos, 1866/67:23), veremos como os demais poderes locais – especificamente o judicial – cediam com veneração perante a sua figura, pressentindo-se de facto esse ambiente de «domínio absoluto»: «Um dia encontrei dois cavalheiros de Paredes, que tendo assistido a parte de uma audiência geral, vinham um pouco indignados; perguntei-lhes o motivo, e responderam-me: é realmente intolerável o procedimento do juiz de direito! Pois sempre que José Guilherme entra no tribunal, levanta-se perfilado, obrigando assim a levantarem-se delegado, advogados, jurados, e tudo quanto ali está!» (op. cit., 23). Por norma protocolar, os advogados costumavam levantar-se à chegada do juiz. Em Paredes, durante o «guilhermismo», era o juiz que se levantava à chegada do advogado José Guilherme.

Os Negócios de Recrutamento

Ainda que o domínio aparentemente ilegítimo da figura e dos seus correligionários fosse na altura já alvo de crítica, segundo o padre José Bragança, isso pouco importava aos próprios ou à sua «facção»: «Ela não se importa que digam que, tendo na mão a administração municipal e o juízo ordinário, e tendo às suas ordens a administração do concelho, vive de abafar processos-crime – de embrulhar os cíveis, principalmente os de órfãos, - de se intrometer em tudo a título de procurador e conciliador, - e de gerir como lhe convém as obras e as cousas do município; e que tira muito interesse material e moral dos negócios de recrutamento» (Exposição e Convite…, 1868:21).

E em que consistiam, afinal, estes «negócios de recrutamento» a que o autor alude e que seriam alegadamente feitos pela facção de José Guilherme em conluio com o clero paroquial? A denúncia é feita nos seguintes termos: «Todos os dias aí se praticam os maiores escândalos em assuntos de recrutamento: depoimentos falsos, certidões falsas, nomes e indivíduos substituídos por outros, pessoas abastadas livrando os filhos a título de serem pobres e precisarem do amparo deles, outras que livram dois e mais filhos a título de amparo, sem que nem um deles lhes preste amparo de espécie alguma; enfim, as maiores injustiças e infracções de lei» (op. cit.:21-22).

Pouco depois destas palavras, o autor levanta retoricamente um conjunto de questões: «Por tanto, como é que a facção de Paredes, sendo o que é, domina aí o concelho? Dizem que lhe tem feito grandes serviços. Mas quais são? Que serviços pode ser capaz de fazer-lhe o Joaquim dos Ferreiros [Meireles]? Que serviços lhe tem feito José Guilherme?» (op. cit.:23). Logo a seguir, as respostas surgem de forma contundente: «Eu vi arranjar aí alguns padres em insignificantes benefícios; vi alcançar algum insignificante emprego; vi agraciar com comendas e hábitos alguns indivíduos, que serão excelentes pessoas, mas que não fizeram serviços públicos pelos quais merecessem as condecorações; e vi gastar totalmente e ridiculamente dinheiro em alindar a vila de Paredes. Mas ninguém dirá que isto são serviços feitos ao concelho; o qual nada lucrou com isso» (op. cit.:23-24).

Mantendo o tom, Bragança prossegue: «Por outro lado vi a facção tomar conta da casa da câmara, estabelecer ali o seu trono, e fazer obras de comodidade e recreio para si naquele seu palácio; vi-a estabelecer a traficância e o compadrio em sistema de governo, e servir-se de todos os meios para chegar aos seus fins. Se se dava um crime, e o criminoso era amigo da facção, ou com ela se apadrinhava, tudo se temperava. Todo o litigante em qualquer questão, que fosse ligar-se aos tais mandões, estava servido, tinha toda a protecção deles, embora a razão, a lei e a justiça estivesse toda da parte contrária» (op. cit.:24).

Uma das atitudes beneméritas frequentemente atribuídas a José Guilherme, aliás parte integrante da sua hagiografia, é a de não cobrar pelos serviços de advocacia e de procuração prestados. Sobre isto, o padre José Leite Bragança diz o seguinte: «Vi enfim o dr. José Guilherme arvorar-se em agenciador de empregos e condecorações, e em procurador de todas as causas, boas ou más; dizendo-se que isso era uma boa fonte de receita para ele por que, como todos os procuradores, recebia previamente algum dinheiro para preparo de cada um desses negócios, e por fim, a paga do seu trabalho ou a recompensa do seu valimento» (op. cit.:24).

O autor não tem, pois, pejo em denunciar uma situação de autêntico feudo político que era Paredes ao tempo de José Guilherme, onde, nas suas palavras abundava o caciquismo, o tratamento de favor, o tráfico de influências, a promiscuidade de poderes e um domínio avassalador e transversal de um só homem, uma só facção e um só partido: «Ter a câmara e o juízo ordinário na mão dá-lhe meios de exploração lucrativa a que já aludi, e dá-lhe força para se impor mais ou menos à administração do concelho, quando esta lhe queira ser hostil; assim como lhe dá dependências, meio para prepotências e abusos, etc., com que ela exerce pressão de todo o género, e amedronta e sujeita: ter o deputado, dá-lhe um valioso meio de fundamentar os oferecimentos e as promessas aos pretendentes de todos os géneros, a quem ela se apresenta para procurador» (op. cit.:26).

Alindar a Câmara e Aformosear a Vila

O estado de «desgoverno» das finanças da administração de Guilherme também mereceu duras críticas. Sobretudo a ideia de gastos supérfluos na comodidade do próprio e do centro da vila de Paredes em detrimento das demais freguesias do concelho. A este propósito, o padre Bragança refere: «É preciso que se não gaste o dinheiro sem proveito ou necessidade em alindar a casa da câmara para o dr. José Guilherme e sua família viver mais cómoda e agradavelmente sem pagar renda, e em aformosear a povoação de Paredes; nem numa estação telegráfica ali, que quando muito virá a receber e expedir um telegrama de oito em oito dias, nem numa improvisada escola secundária, que ou se não chega a estabelecer, como já propôs o conselho superior de instrução pública, ou terá de fechar-se por falta de alunos: mas sim que se gaste em obras úteis, como as que indiquei no princípio, ou outras semelhantes.» Estas obras sugeridas pelo autor diziam respeito à necessidade da criação de estradas municipais, sobretudo na zona sul do concelho.

Ainda sobre a questão financeira do município, em 1871, é lançada nova publicação com um título e subtítulo que resumem de forma elucidativa o seu objectivo: Administração do Município de Paredes: O que era antes que o dr. José Guilherme Pacheco influísse nos negócios do concelho e a que estado chegou com a influência dele e da facção por ele organizada para o dominar e desfrutar. O documento tem 36 páginas e fora impresso na Tipografia de António José da Silva Teixeira, à Rua da Cancela Velha, 62, cidade do Porto. O objectivo era mostrar à população, por via de documentação oficial, a diferença entre os orçamentos municipais do período anterior a José Guilherme e dez anos após a eleição deste enquanto deputado e presidente da Câmara. Aí é dito o seguinte: «Da comparação dos dois orçamentos segue-se que em dez anos a despesa subiu de 1.547$596 réis a 5.083$487, isto é, 328%: sem falar na despesa de viação, que é enorme, como se vê; pois que, abatendo 1.680$915 réis de subsídio do governo, fica o encargo do concelho sendo de 3.977$486» (op. cit.:30). Poder-se-ia concluir que o aumento da despesa se traduzira em investimento em obras municipais de relevo, sobretudo no âmbito das vias de comunicação, outro dos grandes feitos atribuídos a José Guilherme. De acordo com o autor, contudo, não era isso que a realidade evidenciava: «A verdade é que não se vê nada de verdadeira utilidade, a não ser o aumento das escolas de instrução primária; devendo porém notar-se que o governo as tem aumentado em toda a parte, e que José Guilherme em pouco influiu para isso» (ibid., idem).

As principais acusações a José Guilherme e à sua administração giravam, assim, em torno do despesismo, do centralismo e do comodismo. Os autores do opúsculo de 1871 plasmaram também o seguinte: «Em troca dos dinheiros gastos louca e escandalosamente por José Guilherme na câmara, dos escândalos praticados por Joaquim de Meireles de acordo com ele no juízo ordinário, das torpezas no recrutamento, etc., deram-nos uns bonitos na vila; e mais nada! (…) As inclinações, como já dissemos, porém, e as necessidades da nossa santa gente reclamavam outra cousa. Por isso cortaram por largo em todas as verbas costumadas de despesa, e criaram até despesas novas; por isso em lugar de lhes sobejar 936$800 réis dos seus rendimentos e dos impostos do costume, como realmente lhes sobejaria, se eles quisessem gastar só o necessário, faltou-lhes ainda para saldar o orçamento a quantia de 1.329$000 réis: a qual não duvidaram obrigar o povo a pagar, por meio de contribuição directa a dinheiro, que nunca se tinha pago neste concelho! Carregaram pois o povo sem necessidade. Para gastar o que não deviam gastar, obrigaram-no a pagar o que não era preciso que pagasse! Aí tem o povo como essa gente é sua amiga. Eis aí o que tem que lhe agradecer!» (Administração do Município de Paredes: o que era antes…, 1871:30).

O Telégrafo que Não Tinha que Fazer

A existência de telégrafo em Paredes é outro dos «melhoramentos» locais atribuídos a José Guilherme. Contudo, na altura, a «inovação» fora considerada uma inutilidade com prejuízo para os cofres do município. Competia à câmara o pagamento de uma terça parte do ordenado do telegrafista (o restante cabia ao Estado), mas que mesmo isso deveria ser evitado. Na óptica dos autores de uma das fontes que temos vindo a citar, «a gratificação ao telegrafista devia acabar, por que a estação telegráfica devia fechar-se. A estação não tem que fazer: hoje serve quase somente para os compradores de Lisboa no tempo do ano que estão em Baltar, que pouco é, e para o comprador João da Costa, que quando lhe parecer pode passar a servir-se do telégrafo do seu concelho, não fazendo caso do pedido que José Guilherme lhe fez para servir-se do de Paredes» (op. cit.:17). Segundo a mesma fonte, o telégrafo dava de prejuízo 34$666 réis por ano, só servindo «para satisfazer a vaidade de José Guilherme e da sua gente» (ibid., idem).

Quanto aos gastos com a «viação», i. e., estradas e caminhos públicos, o documento dá um exemplo concreto de despesismo desnecessário da autarquia paredense desta altura: «A estrada de Paredes a Arreigada é distrital, e portanto devia ser feita à custa dos 17 concelhos do distrito. Está orçada em nove contos. Se o governo desse metade e o distrito outra metade, ao concelho de Paredes tocaria 84$735 réis, fazendo-se a conta na proporção em que a junta geral dividiu este ano os encargos do empréstimo de cem contos contraído para as estradas distritais; (…) Mas José Guilherme e os demais camaristas quiseram que ela fosse municipal, e por tanto feita só à custa do concelho. O governo deu unicamente 1636$050 réis; e por conseguinte o concelho tem de gastar nela 7363$050. (…) E se lhes perguntarem porque é que havendo estradas municipais a construir, foram empregar o fundo de viação existente, e até dinheiro tomado por empréstimo, na construção de estradas distritais, apenas poderão alegar que a estrada de Lousada precisava ser feita para comodidade dos patrícios e da família de José Guilherme; e que a de Arreigada não podia deixar de se fazer até Cristelo, por que isso era do agrado do dr. Jerónimo, de Espeçande, até cuja porta vai o lanço que se arrematou e está construindo.»

A Mais Nefasta e Corrupta das Influências Locais

As críticas aos actos de gestão de José Guilherme foram de tal forma contundentes e ganharam um impacto tal através da imprensa que, a 4 de Novembro de 1869, o governador civil do Porto decide deslocar-se pessoalmente a Paredes com o intuito de realizar um inquérito. Não o terá feito certamente de ânimo leve. Contudo, para a ocasião, os guilhermistas convocaram uma massiva manifestação popular de apoio ao seu «soberano», o que teve como resultado que o magistrado, quiçá temerário, decidisse resignadamente nada obstar à gestão em causa.

José do Barreiro, um assumidamente apaixonado guilhermista, e vários outros autores, não hesitariam por certo em situar todas estas críticas, acusações e insinuações no âmbito da propaganda rancorosa e ingrata de adversários ou inimigos políticos da personalidade idolatrada. A Monografia nunca cita as fontes nem os autores que aqui trouxemos, mas refere-se várias vezes à existência de «inimigos políticos» e «caluniadores». É absolutamente certo que tais considerações vieram do campo oposicionista, adverso à facção regeneradora que dominava em Paredes, mas nem por isso devem deixar de ser trazidas à «luz» da história.

Importa dar ainda nota de que a oposição e a crítica ao ilustre visado não era somente «de campanário», mas também feita por eminentes personalidades nacionais, como Oliveira Martins. Referindo-se a José Guilherme como «a personalidade política mais dissolvente que conhecemos, e a mais nefasta e corrupta das influências locais», o famigerado autor e político progressista deixou expresso o seguinte: «O mandão sem escrúpulos, falto de ciência e de consciência, que tudo sacrifica à vanglória de dispor de um círculo, quando não a interesses mais sórdidos; o elemento desorganizador e subversivo, que tudo vicia e conspurca, que todos pactua, defendendo hoje o bandido, acoutando amanhã o falsário; o influente na sua mais obnóxia manifestação, infamando juízes que diz corromper, comprando votos, negociando empregos; o grande feirante político, produto de uma época céptica e dissoluta; esses tipos repugnantes que se julgam fortes e invencíveis dentro de muralhas de lama: são os modelos adorados pelo actual Presidente da Junta Geral do Distrito do Porto. E é o sr. José Guilherme Pacheco, minúsculo ditador na região do Norte, e rei absoluto em Paredes, acostumado a desprezar a lei e a dissolver as instituições, o patriota exímio que se levanta a pregar uma cruzada de resistência contra a reforma que, cerceando-lhe os víveres e definindo-lhe precisamente as regalias de cidadão português, o reduz às verdadeiras dimensões de advogado rábula e pouco letrado. Causaria riso, se não provocasse indignação. É no eterno pretendente, no partido insofrido, que simula um amuo para cada exigência não satisfeita; é no homem sem prestígio e sem autoridade moral, que a gente do sr. Fontes quer encontrar um núcleo de revolução, um ponto de apoio para a sua resistência desvairada! Se interesses de ordem mais elevada não tivessem aconselhado e determinado o Gabinete a promulgar imediatamente a reforma do Código Administrativo, os desatinos praticados pela comissão executiva da Junta Geral do Distrito do Porto, os seus erros e desvarios eram suficientes para justificar a providência governativa, que bem mereceu a sanção da Coroa, embora ferisse os direitos reais que julga usufruir o senhor de Paredes. Com efeito, nunca o regime fontista do esbanjamento e da corrupção teve uma aplicação tão desenvolvida e uma tão lata interpretação, como na gerência do conselheiro José Guilherme Pacheco, que a estas horas anda atarefado arrebanhando para o seu lar as hordas de bárbaros com que promete invadir o Porto a um sinal dado» (A Província, 1959, vol. III:64-65).

Joaquim Pedro de Oliveira Martins, figura proeminente da cultura portuguesa na segunda metade do século XIX, teceu críticas duríssimas ao «Rei de Paredes»

Como fizemos questão de frisar introdutoriamente, a imagem local impoluta de José Guilherme ficou a dever-se, em grande parte, à Monografia de Paredes, obra isolada que acabou por estabelecer oficiosamente a história do concelho. Todavia, será da maior injustiça criticar Barreiro pelo facto de a sua pena ter obedecido aos seus evidentes sentimentos de profunda admiração e estima pelo conselheiro, até porque o próprio fez questão de avisar para essa circunstância logo no começo das páginas em que tratou do biografado: «Sirvam os artigos seguintes a honrá-lo como monumento literário, enquanto não há outro». Foi, pois, para «honrar», «prestigiar», «monumentalizar», que o historiador paredense escreveu o que escreveu sobre o «rei de Paredes». Citou-se a si próprio em artigos de jornal, exacerbou o homem e alavancou o mito. As «luzes» acenderam-se no princípio do século XX e foram-se reacendendo nos contextos históricos posteriores, num palimpsesto acrítico que não ousou nada mais que repetir ou secundar o que já havia sido «monumentalizado». É também o próprio José do Barreiro quem, a propósito de José Guilherme e seus adversários, diz o seguinte: «Também um quadro, por mais belo que seja, precisa de sombra» (1922:188). Pois conhecidas que eram as «luzes», que se evidenciem e analisem também agora, as inevitáveis «sombras».


BIBLIOGRAFIA
BARREIRO, J. Monografia de Paredes. Edição Fac-Similada, CM Paredes, 2021 [1922].
BRAGANÇA, J. J. L. Exposição e Convite aos Povos do Concelho de Paredes: Particularmente aos que constituem as assembleias eleitorais de Recarei e Vandoma. Porto: Tip. de António J. S. Teixeira, 1868.
MARTINS, Oliveira. A Província. Vol. III. Lisboa: Guimarães Editores, 1959.
S/A. Administração do Município de Paredes: O que era antes que o dr. José Guilherme Pacheco influísse nos negócios do concelho e a que estado chegou com a influência dele e da facção por ele organizada para o dominar e desfrutar. Porto: Tip. de António J. S. Teixeira, 1871.
S/A. Aos Poderes Públicos. Porto: Tipografia do Jornal de Lisboa, S/d.
S/A. Projecto d’um Centro Político em Paredes. Porto: Tip. de António J. S. Teixeira, 1870.
SERRÃO, J. e MARQUES, A. H. (dir.). Nova História de Portugal: Portugal e a Regeneração. Lisboa: Ed. Presença, 2004.
SILVA, Ivo R. Paredes e a Primeira República. CEI-ISCAP/CM Paredes, 2020.

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