Texto de Apresentação - Dr. António Aresta
Apresentação do livro Crónicas Paredenses II , de Ivo Rafael Silva, no VII Seminário Paredes : Cultura e História, no dia 3 de Maio de 2025, no Auditório da Escola Secundária de Paredes.
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado.
Luís de Camões, Os Lusíadas, X.154
A história de Paredes e do seu concelho, que é uma história cultural e pluridimensional, começou a ser metodicamente estudada por José do Barreiro que publicou a Monografia de Paredes em 1922, cujo segundo volume com correcções e acrescentos é de 1924. Esta obra notável foi reeditada em fac-símile, pela Câmara Municipal de Paredes, em 2021.
É uma massa imensa de informações, um verdadeiro vade mecum para a história do concelho. Mas não só.
Apesar do campo de investigação ser riquíssimo e desafiante, há grandes figuras que permanecem num esquecimento que tem tanto de atroz como de desleixado ou de injusto.
Refiro-me, por exemplo, a António Augusto Teixeira de Vasconcelos [1816-1878], político, jornalista e literato de renome, que também foi incompreensível e misteriosamente saneado de patrono da Escola Preparatória de Paredes.
Mas, lembro igualmente outras grandes personalidades, por exemplo, José Barbosa Leão [1818-1888], João Gomes Ferreira [1851-1897], António Barbosa Leão [1860-1929], Francisco Moreira das Neves [1906-1992], António Moreira Cabral [1833-1911], Joaquim Alves Correia [1886-1951], Manuel Alves Correia [1881-1948] ou Francisco da Cunha Leão [1907-1974], cuja vida e obra aguardam por um estudo isento, competente e clarificador. São figuras, todas elas, de dimensão nacional que deveriam transformar-se numa mais-valia cultural de reconhecimento e de grande prestígio para o concelho. Saiba o município congregar vontades, incentivar e promover a sua valoração.
Outros investigadores, professores, jornalistas e historiadores continuaram esse legado, consistentemente encetado por José do Barreiro, inovando, corrigindo, cruzando informações, rasgando novos horizontes e aprofundando essa fecunda história cultural, tais como Manuel Abranches de Soveral, Manuel Ferreira Coelho, António Gomes de Sousa, José Leão, Alda Neto, José Pinto, Cristiano Marques da Costa, Jorge Araújo, Ivo Rafael Silva entre outros.
Permitam-me que puxe a brasa à minha sardinha e releve o papel da Hexágono – Associação dos Antigos Alunos e Amigos da Escola Secundária de Paredes, que organiza o Seminário Paredes – Cultura e História, com sete edições consecutivas [a pandemia do Covid 19, cancelou duas edições], que investiu sempre na divulgação e na investigação sobre a história cultural de Paredes, porque esse era o caminho para se construir cientificamente uma dimensão local de alguns segmentos dos programas escolares.
A Revista Papel de Paredes, da Escola Secundária de Paredes|Hexágono, publicou ao longo dos anos, diversos estudos sobre o concelho e as suas personalidades mais marcantes.
Também é digno de realce o papel destacado da Revista Cultural Orpheu Paredes, da Câmara Municipal de Paredes, como repositório de ensaios diversos, não esquecendo o original e valioso suplemento intitulado Dicionário das Figuras Históricas de Paredes.
É nesta heterogénea linhagem historiográfica e cultural e de largos caminhos hermenêuticos que Ivo Rafael Silva se insere.
Natural de Recarei, em Paredes, e apesar de jovem possui já um extenso e valioso trajecto como investigador e pesquisador de temas paredenses, nas áreas da história, da biografia, da economia, da religião, da etnografia ou da antropologia cultural.
Para além de ensaios dispersos em revistas e artigos na imprensa é autor ou co-autor das seguintes obras : Villa Recaredi, 2008 ; Recarei e o Sacerdócio, 2010 ; Crónicas Recaredenses, 2013 ; Paredenses na Grande Guerra : 1914-1918, 2017 ; Paredes e a Primeira República, 2020 ; Vasco da Gama Futebol Clube de Recarei, 2021 ; Crónicas Paredenses I, 2023 ; Crónicas Paredenses II, 2024.
Parece-me importante dar a voz ao autor para clarificar o seu intuito e a sua metodologia : “Crónicas Paredenses foi o título escolhido para a série de artigos historiográficos sobre o concelho de Paredes que, a partir de 8 de Abril de 2021, foi sendo publicada no jornal quinzenário local O Paredense. Este volume reúne tantos os textos do jornal, como os que foram inseridos no website homónimo (cronicasparedenses.pt), criado em Março de 2023” [Crónicas Paredenses I, 2023, Nota Introdutória].
Ivo Rafael Silva refere ainda que “o objectivo de assentar a investigação numa publicação acessível, útil e prática, continua a nortear todo o nosso trabalho, sem que tal signifique abdicar, por um só momento, da busca do rigor e da aplicação do método de investigação científica em cada temática, cada texto, cada parágrafo ou cada palavra” [Crónicas Paredenses II, 2024, Nota Introdutória].
Estes dois volumes das Crónicas Paredenses são monumentais [526 e 474 páginas] pela amplitude das temáticas e pelo rigor da investigação, sem esquecer a elegância discursiva. E também é de realçar o cuidadoso aparato gráfico destes livros.
Nas Crónicas Paredenses, ao longo de 69 ensaios, da bibliografia e das ilustrações, encontramos os melhores lances da história de Paredes, os seus protagonistas, os episódios insólitos, a história militar, os desportos, a presença da Igreja, os problemas políticos ou a revisitação da agitada governança municipal.
Esta tarefa de pensar as imperfeições do quotidiano, balizado este entre o local, o regional e o global, é uma das formas de assumir um diálogo entre a liberdade, a cultura e os valores, numa modernidade pouco exigente mas muito acelerada pela emergência de todas as novas tecnologias.
Depois de ler o segundo volume, ocorreu-me inevitavelmente aquela célebre afirmação de René Descartes, nos Princípios da Filosofia “...viver sem filosofar é ter os olhos fechados e nunca tentar abri-los ; e o prazer de ver todas as coisas que a nossa vista descobre não é nada comparável à satisfação que nos dá o conhecimento das coisas que alcançamos através da Filosofia”. Abrir os olhos para a realidade pode ser um acto custoso, mesmo perigoso, mas isso é a essência da vida e da coragem de viver. Pensar com autonomia, isenção e liberdade, com os olhos bem abertos, é o projecto de vida de quem faz investigação.
E uma forma de olhar o mundo que nos rodeia, interpela e desafia é, por exemplo, ler a imprensa que se publicou em Paredes, desde o século XIX. Seria muito importante organizar uma hemeroteca, com os jornais mais antigos digitalizados e microfilmados, acessíveis aos investigadores e aos curiosos.
Inscrevo Ivo Rafael Silva nessa linhagem de pensadores de uma fenomenologia cultural compreensiva do quotidiano que aceita os desafios da política, da globalização, das críticas à justiça social, à democracia e às liberdades porque é neste cosmos que a sociedade civil se vai fortalecer para exigir responsabilidade e melhor cidadania.
É um homem sinceramente afecto às letras, à história e à cultura. Muitos dos seus inúmeros leitores tem beneficiado da largueza de horizontes da sua capacidade de problematização e do cosmopolitismo e actualização dos seus pontos de vista.
Um trabalho minucioso, que nos ajuda a definir o perfil de um probo investigador, está por exemplo nos capítulos “As Terras de Paredes no Tombo dos Bens de Paço de Sousa, 1593”, nos “Inquéritos Diocesanos” de 1821 e de 1937, nas “Relações de Bens das Igrejas em 1769-1770” ou nos “Paredenses na Exposição Internacional do Porto, 1865”.
Gostaria de chamar a atenção para duas crónicas excelentes, “Nos 500 anos de Camões – um crítico barroco em Rebordosa” e “Camilo e a Estalagem de Baltar”, ambas tributárias de uma investigação meticulosa, apaixonada e muito atenta aos pormenores.
Outro importante estudo é “O Subsídio Literário e a Produção Vinícola nos Séculos XVIII e XIX”, essencial para o delineamento da história da instrução pública em Paredes, uma área de estudos onde está quase tudo por estudar e investigar. Por exemplo, abre-se o monumental Portugal – Diccionário Histórico, Chorographico, Heraldico, Biographico, Bibliographico, Numismatico e Artístico, de Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues [editado por João Romano Torres, Lisboa, 1904], e colhemos estas duas informações. A primeira, “por muitos anos houve em Paredes um professor régio de latim” [p. 447] ; a segunda, há a “Escola Conde Ferreira para os dois sexos, Ginásio José Luiz da Silva Ribeiro, oferecido à mesma Escola, biblioteca municipal , parte integrante da referida Escola” [p. 447]. Por esta amostra se nota o muito que nos falta conhecer e saber sobre a instrução pública no concelho de Paredes.
E como comemoramos neste ano de 2025 os 200 anos do nascimento do grande mestre que foi Camilo Castelo Branco, gostaria de rapidamente lembrar um esquecido livro, Mosaico e Silva de Curiosidades Históricas, Literárias e Biográficas, publicado em 1868, onde se narram as peripécias de um viajante na província do Minho em 1785.
Descreve-nos o estado das livrarias em cinco conventos, que evoco num relance.
O primeiro, é o de Alpendurada, no Marco de Canaveses : “vi a livraria antiga, que estava na casa mais imunda que imaginar se pode, cheia de teias de aranha e, o que é mais, de bacalhau, uvas, maçãs, etc. Ainda que por causa da porcaria poucos livros pude ver, pareceu-me que os não tinha de suposição nem manuscritos de estimação” [p. 216].
O segundo é o de Paço de Sousa, em Penafiel : “Tomadas as bênçãos do costume, fui à livraria, que achei sem ordem alguma : metade dos livros estavam pelo chão e muitos abertos por cima das mesas. Parece-me que tinha poucos livros antigos de consideração e não muitos modernos. A casa estava imunda, forrada de teias de aranha” [p. 218].
O terceiro convento foi o de Bustelo, em Penafiel : “fui à livraria, que com efeito tem os livros nas estantes e com sua arrumação, se bem que muito má, ainda que o bibliotecário disse que tinha cuidado nisto” [p. 219].
O quarto é o de Travanca, em Amarante : “passei à livraria, que não achei tão boa como supunha” [p. 220].
O quinto convento é o de Pombeiro, em Felgueiras : “fui à livraria que é maior que a de Bustelo e Travanca, mas sem livros de consideração” [p. 221].
Estes frades eram, como se vê, pouco amigos dos livros e da cultura. Talvez fossem prendados noutras actividades ou misteres.
Os conventos existentes no antigo e actual perímetro do concelho de Paredes escaparam, não se sabe porquê, a esta vistoria ou romagem, tais como o de S. Pedro de Cête ou o de Vilela. Foi pena.
Poderemos, algum dia, conhecer o estado das livrarias que existiam nessas duas instituições, havendo fontes documentais disponíveis, como é evidente ?
Ivo Rafael Silva merece ser louvado, reconhecido e apoiado pelo incansável e probo trabalho que tem feito em prol de Paredes, da sua cultura e da sua história. Ficamos todos a aguardar as Crónicas Paredenses III.
António Manuel de Aragão Borges Aresta
Professor e investigador
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