Adão António Pinto Brandão: o «Maior Atleta Vascaíno de Todos os Tempos»
A existência de um clube desportivo fundado em Recarei, em 1930, por inspiração no Clube de Regatas Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, Brasil, não é a única associação ou ligação histórica existente entre o «Gigante da Colina» e o concelho de Paredes. A verdade é que aquele que é ainda hoje, em terras brasileiras, apodado de «maior atleta vascaíno de todos os tempos», que foi autor do primeiro golo oficial da história do clube carioca, e que surge descrito como «um símbolo, uma relíquia, um exemplo de desportista, tipo padrão do atleta cruzmaltino» , nasceu na freguesia de Bitarães, concelho de Paredes.
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Adão António Pinto Brandão é dado equivocamente, na generalidade das fontes consultadas, como sendo natural de Penafiel, mas o respectivo registo de baptismo desfaz todos os equívocos a esse respeito: «Aos quatro dias do mês de Novembro do ano de mil oitocentos noventa e seis nesta igreja paroquial de São Tomé de Bitarães, concelho de Paredes, Diocese do Porto, baptizei solenemente um indivíduo do sexo masculino, a quem dei o nome de Adão António e que nasceu no lugar da Mulra, desta freguesia, pelas nove horas e vinte minutos da noite no dia vinte e dois do mês de Agosto do ano de mil oitocentos noventa e seis (…)» (ADP, Reg. Par. Bapt. de Bitarães, 1896, n.º 20, fls. 6v.).
Era o filho primogénito de Francisco Manuel Rodrigues Pinto Brandão (1869-1939), natural de Mouriz, advogado e conservador em Penafiel, e de Maria da Graça de Almeida Gonçalves (1873-1965), da Casa da Mulra, Bitarães, irmã dessa figura de proa do republicanismo local que foi António Augusto Gonçalves de Carvalho (vide Paredes e a Primeira República, 2020:75-84, etc.). A título de curiosidade, refira-se que aquele a quem dedicamos esta Crónica era tio-avô de José Rodrigues dos Santos, conhecido apresentador, jornalista e escritor.
A primeira «herança» que Adão António recebeu foi a dos nomes próprios dos dois avôs. Do lado materno, era neto de Adão Gonçalves de Carvalho (1832-1880), natural de Vila Boa de Quires, senhor da Casa e Quinta da Mulra, propriedade que terá comprado ao Mosteiro Beneditino de Santo Tirso, na sequência da extinção das Ordens e da alienação do respectivo património fundiário. Adão foi emigrante bem-sucedido no Brasil, onde, em 1856, fundou a Fábrica de Calçados Adão, empresa que atravessou quatro gerações da mesma família e laborou durante 117 anos (Carvalho, 2010:23).
Do lado paterno, era neto do Dr. António Rodrigues Moreira (1814-1878), advogado, vereador e presidente da Câmara Municipal de Paredes entre 1858 e 1864, proprietário da Casa do Outeiro d’Além, Mouriz, imóvel que recebeu por dote da sua esposa, Margarida Máxima de Meireles Vidal (Soveral, Dicionário das Figuras Históricas de Paredes, supl. Revista Orpheu, 2021:13).
Dos juvenis do Futebol Clube do Porto ao Brasil
Filho de uma família de posses, aos 14 anos, Adão estudava já num prestigiado colégio da cidade do Porto – Colégio de São Carlos –, sito no n.º62 da Rua de Fernandes Tomás. Foi nos jogos realizados com os seus colegas nesse estabelecimento de ensino que despertou a atenção de alguém ligado ao Futebol Clube do Porto, que o convidou a integrar aquilo que dizia ser uma «equipa de verdade». Brandão aceitou o repto e jogou nos juvenis dos «dragões», como «titular», até 1911 (Pereira, 1952, jornal «Os Sports» apud Netvasco).
Em 1912, ruma ao Rio de Janeiro, Brasil, destino promissor, onde viviam alguns dos seus familiares e onde, como dissemos, o seu avô havia fundado, com sucesso, uma importante fábrica de calçado. Foi nessa mesma unidade empresarial familiar que trabalhou praticamente durante toda a sua vida, dedicando-se apenas ao labor fabril, até ao dia em que confidenciara a um colega operário que tinha jogado nos juvenis do Futebol Clube do Porto. Foi então convidado para jogar no Real Grandeza Football Club, cujo campo ficava na zona de Copacabana. As suas prestações impressionaram desde o primeiro treino (Ibid., idem).
A sua, por enquanto, ainda modesta carreira desportiva, começaria pouco depois, de forma filiada, numa equipa designada Centro Português de Desportos. Após um jogo contra o principal oponente, o Lusitânia, Brandão foi considerado o melhor em campo, recebendo logo aí um convite para se juntar à equipa adversária. No Lusitânia, onde já pontificavam atletas de categoria superior, o polivalente jogador paredense brilhou em várias posições (Ibid., idem).
No ano de 1915, o clube em que Adão jogava fundira-se com o Clube de Regatas Vasco da Gama, que até àquela data não dispunha de secção de futebol. No ano seguinte, é feita a filiação na Liga Metropolitana e, a 3 de Maio de 1916, a equipa vascaína fazia o seu primeiro jogo oficial, tendo por adversário o Paladino Football Club (Ibid., idem).
O primeiro golo oficial da história do CR Vasco da Gama
Esta partida, desde logo, por significar a estreia em competições oficiais, entraria naturalmente para a história do Vasco da Gama, e do desporto brasileiro em geral, até tendo em conta o grau de importância que este clube alcançaria nas décadas seguintes e conservaria até ao presente. Mas ainda mais histórico se tornaria para o atleta nascido na Casa da Mulra. O resultado final foi totalmente desequilibrado, com o Paladino a vencer os estreantes vascaínos por 10-1. O autor do único tento do Vasco da Gama, ou seja, o marcador do primeiro golo oficial da história daquele que se tornaria num dos maiores e mais mediáticos clubes desportivos do Brasil, e hoje de fama universal, foi o paredense Adão António Pinto Brandão, que balançou as redes, segundo reportagem do periódico desportivo Lance!, com «um de bico de chuteira, desviando um chute torto que veio da direita», quando o marcador assinalava já o resultado de 8-0 (via blogue «Futebolizando»).
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Adão foi considerado o «maior atleta vascaíno de todos os tempos» |
Apesar da diferença de categoria dos atletas das duas equipas, esta colossal derrota enfurecera a torcida «Cruzmaltina» , que recebeu os jogadores e responsáveis técnicos com uma «chuvada» de laranjas chupadas, laranjas podres e cascas. A montante da reacção terá estado a equipa de remo do próprio clube, que considerava o futebol um desporto menor, sem categoria e sem prestígio, e que nunca tinha encarado com bons olhos a aposta da «directoria» na modalidade. Só quando a equipa da bola começou a triunfar sobre rivais e a mostrar toda a sua capacidade competitiva, é que os «remadores» passaram a encarar aqueles jovens futebolistas também como parte da sua identidade institucional e desportiva (Ibid., idem).
Contrariamente a outros grandes «times» do desporto-rei do Brasil, o Vasco da Gama começou na última divisão e foi subindo, pelo seu próprio mérito, até ao escalão principal. De 1916 a 1921, Adão António integrou todos os plantéis principais vascaínos, sendo parte fundamental e indissociável dos seus feitos e conquistas. Em 1922, seria campeão da Série B da 1.ª Divisão e, no ano seguinte, vencedor do Campeonato Carioca.
Um génio da bola, uma glória do eclectismo
Facto nos dias de hoje impensável para um futebolista que alinhe numa equipa dos principais escalões competitivos, enquanto brilhava dentro das quatro linhas, Adão António dedicava-se também, em simultâneo, à prática desportiva oficial de outras modalidades e sob o mesmo emblema. Praticou remo, atletismo, natação, pólo aquático, ténis de mesa e tiro ao alvo (Ibid., idem). Não foi um percurso propriamente «secundário». O génio da bola conquistara, no total, 65 troféus para o Vasco, a maioria fora do futebol. Foi campeão de remo em 1919 e 1921, venceu provas clássicas da modalidade e manteve o estatuto de invencibilidade nos anos de 1921 e 1922. Após uma importante conquista, o presidente vascaíno, Francisco Marques da Silva, ao mesmo tempo que segurava uma garrafa de champagne, dirigiu-se ao desportista paredense com as seguintes palavras: «Sr. Adão António Brandão, o Vasco se orgulha de ser um grande clube e de saber reconhecer o valor dos seus atletas. Receba esse banho como uma homenagem do Vasco a uma das suas glórias» (Ibid., idem).
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Cartaz da guarnição vascaína de remo (1921). Adão é o terceiro na fila de cima (Foto: Netvasco) |
No que concerne ao atletismo, Brandão via acharem-lhe «graça» quando dizia que treinava para bater aquele que era, em 1922, o campeão sul-americano em título: Ulisses Malaguti, atleta do rival Flamengo. Só que a «graça» tornou-se «júbilo» quando, de facto, o triunfo acabou por acontecer. No campo do Botafogo, numa tarde de glória, Adão foi mais veloz do que Malaguti para delírio dos vascaínos presentes. «Venci pelo Vasco, e pelo Vasco não há nada que eu não possa fazer», referira no final da corrida aquele que era já uma lenda do eclectismo vascaíno. No ténis de mesa, ou «ping-pong», apesar de não haver torneios de carácter oficial, ou federados, os treinos e provas competitivas não deixavam de se realizar. Adão foi, segundo Giampaoli Pereira nos artigos que nos servem de base (via Netvasco), o melhor do seu tempo. Venceu quatro provas internas e várias competições inter-clubes.
Da «resposta histórica» à curta passagem por Portugal
Regressando ao futebol vascaíno no início dessa década de 20, o carácter amador e precário da recém surgida modalidade era percepcionável, desde logo, pelo facto de os jogadores terem de comprar o seu próprio equipamento e de o clube não ter sequer um campo que pudesse chamar seu. Havia ainda uma diferença identitária e social de suma relevância em relação aos seus desportistas, que era, aliás, parte inseparável do seu emergente e rápido sucesso: o recrutamento de atletas nos bairros pobres, operários, marginalizados e favelados do Rio de Janeiro. Numa época em que os principais emblemas jogavam somente com atletas «brancos» e de «boas famílias», o Vasco fazia-se alinhar com futebolistas negros, pobres, analfabetos, mas «muito bons de bola», derrotando adversários e derrubando muros sociais, facto que não pode ser dissociado do contexto então vivido de ascenso galopante e transversal de ideias e regimes totalitários de cariz racista, classista e xenófobo.
O pináculo dessa luta do Clube de Regatas Vasco da Gama contra a discriminação deu-se em 1924, com aquela que ficaria conhecida por «resposta histórica». Os vascaínos foram visados pela Liga Metropolitana de Desportos Terrestres, entidade organizadora da elite do futebol brasileiro, com a pena de exclusão de 12 atletas por incumprimento de normas que eram verdadeiramente segregacionistas. A lei vetava a inscrição de jogadores que exercessem «profissões humilhantes que permitissem recebimento de gorjetas», os analfabetos, os considerados «abaixo do nível moral exigido» por terem «posição, profissão ou emprego abaixo do nível de moral exigido», ou simplesmente, por não terem profissão.
A resposta do clube, em face da determinação, foi a de impedir a humilhação de parte da sua equipa auto-excluindo-se da prova de forma colectiva e solidária. Abdicando de jogar ao mais alto nível, o Vasco da Gama abandonava, sob protesto e sem hesitação, o primeiro e principal escalão de futebol do país. A associação que regia o futebol brasileiro chegou a responder «que esperava que o Vasco construísse equipas genuinamente portuguesas», chamada então de «nobre raça secular» (in O Globo online). Mais tarde, essas normas seriam revogadas e o Vasco regressaria aos grandes palcos desportivos para voltar a triunfar e continuar a «agigantar-se».
A atitude institucional tomada significou um marco e uma viragem no desporto brasileiro. Num quadro exposto no espaço museológico do estádio São Januário, está inscrita uma frase onde se pode ler que «sem o Vasco, o futebol brasileiro não teria conhecido Pelé». O «futebol brasileiro» e o mundo, acrescentamos nós.
Em 1922, Adão regressou a Portugal em visita à sua família, ainda que por um muito breve período de tempo. Já bastante conhecido e reconhecido nas ruas do seu país natal, chegou a vestir em campo a camisola axadrezada do Boavista e a ser convocado para a selecção do Porto, que defrontaria a de Lisboa. Desse encontro foram escolhidos os melhores para integrarem a «selecção nacional» que, por sua vez, defrontara, daí a dias, a selecção de Espanha. Adão foi um dos eleitos como «reserva». No ano seguinte, acabou por voltar ao Rio de Janeiro.
Quando chegou à «cidade maravilhosa», colocou-se de novo à disposição do então técnico de futebol do Vasco, Ramon Platero, que orientava a equipa na 1.ª Divisão. O português treinava das 5h às 6h da manhã para depois rumar à fábrica, que era o seu verdadeiro ganha-pão. Aceitou, com humildade e total acatamento, a condição de ficar na equipa secundária, até que decidiu que era tempo de abandonar o futebol para constituir e cuidar da família.
O casamento e a «imortalidade»
No dia 22 de Setembro de 1927, cinco meses depois da inauguração do Estádio São Januário, Adão António casou com Rosa Fernandes Portella, filha de Alberto Balthazar Portella, renomado dirigente vascaíno, e da primeira sócia e benemérita do mesmo clube, Avelina Fernandes Portella.
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Parte do espaço museológico do CR Vasco da Gama, São Januário. O paredense Adão António conquistou 65 troféus em várias modalidades para o clube carioca (Foto do autor, dez. de 2019) |
A ligação aos «camisas negras do Rio» continuaria, mas agora sob outras responsabilidades ou tarefas. Além de sócio e atleta, Adão foi conselheiro, director, vice-presidente da Assembleia Geral e considerado formalmente Benemérito e Grande Benemérito da instituição.
Permaneceu na capital do estado carioca, residindo com a esposa e as suas duas filhas, Yolanda e Regina, na Avenida Rainha Elizabeth n.º559, Copacabana. Em 1971, adoeceu gravemente devido a um coágulo no cérebro e, com o deteriorar do seu estado de saúde, foi perdendo a memória. Em entrevista ao jornalista Ricardo Linhares, do Lance!, a esposa referia que o marido se esquecera da infância em Portugal e dos tempos da fábrica de calçado, mas «do Vasco nunca!».
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Estádio São Januário, casa oficial do CR Vasco da Gama (Foto do autor, dez. de 2019) |
Adão António Pinto Brandão faleceu no dia 2 de Julho de 1978, no Hospital Glória D'Or, Rio de Janeiro. O paredense de Bitarães, considerado «o maior atleta cruzmaltino (ou vascaíno) de todos os tempos» e, seguramente, um dos mais proeminentes e «imortais» nomes do eclectismo desportivo brasileiro, até aqui erradamente dado como «natural de Penafiel», nunca fora biografado, reconhecido ou lembrado na sua verdadeira terra natal. Que esta Crónica lhe faça ou reponha, então, na pequena parte que nos cabe, a justiça possível.
Nota: Este artigo foi originalmente publicado no livro «Crónicas Paredenses» Volume II, ed. de autor, 2024.
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