Paredes e a Guerra Civil (1832-1834)

Em Abril de 1826, D. Pedro IV de Portugal e Imperador Primeiro do Brasil, outorga a Carta Constitucional e abdica do trono português em favor da sua filha, D. Maria da Glória. D. Miguel é chamado a assumir a regência até à maioridade da infanta. Havia sido estabelecido entre os dois irmãos o casamento de D. Miguel com a herdeira legítima, comprometendo-se este a assumir o plano do Imperador e a jurar o documento fundamental. Dois anos depois, rompendo o pacto estabelecido, D. Miguel dissolve a Câmara dos Deputados e convoca, à maneira antiga, os três estados do Reino: Clero, Nobreza e Povo. Faz-se aclamar, com o peso simbólico do manto e do ceptro, «rei absoluto», e lança, no período seguinte, uma feroz perseguição aos liberais.

Entre as vítimas do chamado «terror miguelista» ficou Manuel Luís Nogueira, juiz de fora de Aveiro, natural de Baltar, que acabou enforcado e decapitado, tendo a sua cabeça ficado exposta três dias defronte do convento do Carmo, em Aveiro. Outros acusados de «liberalismo», também naturais de várias das freguesias do actual concelho de Paredes, acabaram uns citados, outros mesmo condenados ao cárcere pelo Tribunal da Alçada (Gomes de Sousa, 2016:18-19). Dois destes, merecem destaque: António Dias Moreira, que viria a ser (em 1846), ainda que por apenas três meses, presidente da Câmara Municipal de Paredes (Marques, 2017:79); e Sérgio de Morais Alão, de quem falaremos mais para diante.

Em Londres, D. Pedro forma o entretanto cognominado Exército Libertador, contraindo empréstimos avultados e contratando soldados mercenários e oficiais veteranos da Guerra Peninsular. Ruma a Portugal com o fito de enfrentar o irmão, implantar o regime constitucional e recuperar o trono para a filha. Após estabelecer governo em Angra do Heroísmo, nos Açores, desembarca a 8 de Julho de 1832 numa praia entre Lavra e Perafita, Matosinhos, naquele que ficaria conhecido como «Desembarque do Mindelo». Era o início da Guerra Civil que oporia duas concepções filosóficas, políticas e governativas distintas – liberalismo e absolutismo -, que se arrastaria até à Convenção de Évora-Monte, assinada em 1834. 
 
Ilustração de D. Amélia, D. Pedro IV, com a Carta, e D. Maria da Glória (Maurin, 1826)

Esta fase bélica da História de Portugal desenvolveu-se em vários pontos do país, mas de forma muito marcante na cidade do Porto, onde os liberais, com o próprio D. Pedro à cabeça, resistiriam durante vários meses a um penoso cerco perpetrado pelas forças miguelistas. Grande parte das acções ocorridas na área do actual concelho de Paredes tiveram que ver, precisamente, com esse contexto histórico específico.

Trata-se de acontecimentos dignos de estudo, menção e memória, não apenas relacionados com o simples trânsito de tropas, mas também, e acima de tudo, com aquartelamentos ou bivaques de elevado significado estratégico e militar, chefiados ou comandados pelas mais destacadas ou proeminentes personalidades militares e políticas daquela época. Travaram-se ainda, neste espaço geográfico, confrontos decisivos, ou batalhas de grande relevância no contexto do «Cerco do Porto», mas também, porque não dizê-lo, no espectro mais alargado da Guerra Civil. Daí que várias localidades paredenses sejam referenciadas em relatórios de oficiais, na imprensa nacional, na memorialística narrativa de militares de alta patente (nacionais e internacionais) - casos de George L. Hodges ou Charles Napier –, ou ainda nas obras historiográficas de Alexandre Herculano, Simão Soriano ou Augusto Pinho Leal, historiadores que foram também intervenientes directos nas incidências do conflito. 

D. Miguel

Além desse manancial bibliográfico de referência, subsistem ainda indicações escritas sobre vítimas a nível local, deixadas, ainda que em pequena parte, nessas fontes históricas privilegiadas que são sempre os assentos de registo paroquial. E dizemos «em pequena parte» porque a grande mortandade, ou seja, a massa de tombados em batalhas sangrentas como a de Ponte Ferreira, acabaria sepultada anonimamente em valas ou jazigos comuns, sem direito a lápide ou referência particular (salvo a indicação nos Livros Mestres). Ainda assim, foi-nos possível identificar e recolher raras, mas bastante elucidativas, excepções à regra.

Por norma, dos soldados de baixa patente – ou seja, da maioria dos protagonistas da guerra – não reza a história, com as fontes literárias da época a preocuparem-se pouco com a base da pirâmide. Neste caso, há que atender aos chamados Livros Mestres das unidades militares, que constituem uma fonte importante – à qual naturalmente recorreremos, extraindo uma amostra de mobilizados.

Certas entradas nos assentos paroquiais também nos revelam alguns soldados, bem como simples transeuntes, estes últimos vítimas colaterais de uma guerra que não era «sua», e até distintas personalidades civis e militares, agraciadas com comendas ou altas honrarias castrenses. Antepondo-se-lhes o devido enquadramento ou contextualização, tais registos acabam por fornecer-nos, em acréscimo, relevantes pistas históricas auxiliadoras da compreensão global do conflito.

Oito dias depois do desembarque no «Mindelo», o oficial britânico George Lloyd Hodges, viu ser-lhe confiado o comando do Regimento de Infantaria n.º 18. No dia seguinte, a 17 de Julho de 1832, marcha sobre Valongo e é informado já em Recarei (então lugar da Sobreira) de que três companhias de linha e um batalhão de voluntários absolutistas haviam passado o Douro na noite anterior e marchado sobre Penafiel. No regresso, Hodges recebe ordens no sentido de seguir com as tropas ao encontro do inimigo (Soriano, 1889:704). 
 
O oficial britânico George Lloyd Hodges comandou o regimento que se confrontou com guerrilhas miguelistas em Baltar e Castelões de Cepeda

Chegado a Baltar às 6:30h de dia 18, aí efectua paragem para que a unidade se pudesse refrescar. Hodges relata que nessa «romântica localidade encontrou uma bela quinta, onde as suas necessidades foram prontamente atendidas pelos criados do proprietário (um Constitucionalista), que tinha ele próprio fugido para o Porto para sua protecção» (Hodges, vol. II, 1833:4, trad. nossa). O oficial constata ainda o facto de, aparentemente, os camponeses se manterem indiferentes ou apáticos à passagem das tropas, sem conseguir assacar deles quaisquer informações. Conta também o episódio curioso que testemunhara à passagem por um povoado, junto da estrada, quando lhe apareceram ao caminho três mulheres de provecta idade. Nessa ocasião, alguns soldados terão gritado «Viva Dona Maria II», ao mesmo tempo que atiravam uma moeda de prata na direcção das anciãs, que são descritas, aliás, como tendo «aspecto miserável». Aqueles convidaram-nas a gritar «Viva D. Pedro», mas obtiveram de uma delas como resposta «Viva D. Miguel Primeiro! Viva o Rei Absoluto!». O facto provocou a ira dos liberais, valendo à «pobre criatura» a cobertura e protecção de alguns homens, a mando do próprio Lloyd Hodges, sendo assim evitados males maiores (op. cit.).

Ainda em Baltar, o britânico toma conhecimento de que havia uma força inimiga nas redondezas, cujos postos avançados, de resto, tinham estado naquela localidade apenas duas horas antes. Com efeito, o comandante destacara uma companhia de voluntários de infantaria ligeira e seis guias a cavalo, no sentido de tomarem a dianteira da coluna no percurso da estrada em direcção a Penafiel. A força não andou muito sem ser flagelada, cujo ataque a tiro a morfologia do terreno favorecia ou propiciava. Hodges mobilizou novas tropas que, penetrando por entre campos de milho e vinhedos, actuariam no sentido de permitir que a força constitucionalista prosseguisse a sua marcha. Nesta altura, os leais a D. Pedro encontravam resistências da parte dos camponeses, tendo o oficial inglês sentido a necessidade dar ordens vigorosas para que nenhum civil fosse molestado, a menos que se apresentasse de armas na mão.

As guerrilhas civis armadas que Hodges encontrara pelo caminho usavam «uniforme», que é descrito pelo próprio da seguinte forma: «Consistia numa camisa curta de cor branca, e calças, um cinturão no qual prendiam pistolas, munições e baionetas, e na cabeça um grande chapéu de palha orlado de fitas com as cores nacionais: azul-escuro e vermelho. Uma longa faca (arma típica dos portugueses) era secretamente guardada junto ao peito. Aqueles que não tinham arcabuzes, traziam consigo uma comprida vara com um aguilhão pontiagudo numa das extremidades» (Hodges, vol. II, 1833:6-7, trad. nossa).

Depois de Baltar, e sem fazer alusão a topónimos que possam auxiliar numa identificação geográfica mais precisa, George refere-se à chegada a uma zona onde o solo era «mais aberto, mas ainda com algumas eminências». Aí se depara com uma força de duas centenas de camponeses armados, das quais cerca de vinte a cavalo. Hodges dirige-se à milícia agitando um lenço branco e com uma escolta que gritava «Viva Portugal! Viva a Pátria». A primeira reacção dos oponentes dera ao oficial a impressão de que se preparavam para o deter. Contudo, ao aparecer no horizonte a primeira linha da coluna liberal, os camponeses retiraram de forma precipitada.

Após este episódio, Hodges dá conta da passagem por uma pequena localidade (Mouriz?) onde ocorreram alguns disparos, mas que foram de tal forma singelos que não se conseguiu sequer descortinar de onde vinham. Nessa povoação, as janelas e portas das casas encontravam-se, nas palavras do oficial, «firmemente fechadas».

Não muito longe dali, os leais a D. Pedro enfrentaram duas guerrilhas, atirando sobre as mesmas quando estas já tentavam fugir. Noutra localidade não nomeada, mas dita «perto de Penafiel» (Castelões de Cepeda?), recebem um habitante que lhes presta informações e entrega dois cavalos para serem oferecidos ao Imperador.

Na página 9 do segundo volume da sua Narrative, o coronel Hodges faz uma descrição do local, dando-nos, acerca do mesmo, detalhes já um pouco mais sugestivos. Fala de uma povoação a que chama «Valiza», situada a uma légua (5km) de Penafiel, onde existia um ribeiro (ou rio) e uma ponte (da Cepeda?). Diz ainda que meia légua mais abaixo (Pias?), o curso de água era facilmente atravessável pela infantaria.

Sendo a força que comandava recebida de imediato por fogo inimigo, Hodges é forçado a reposicionar-se para fazer o reconhecimento das posições adversárias. O que o oficial diz ver, parece sugerir, igualmente, que se achava na actual cidade de Paredes. Descreve que «para a esquerda da cidade [depreende-se o centro de Penafiel]» vê «uma linha formidável de pelo menos duzentos homens», cuja direita «toca um convento», provavelmente o de Santo António dos Capuchos e actual Hospital da Arrifana. Refere ainda «outro convento praticamente em frente ao centro da cidade», talvez o Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição, actual quartel da GNR. Em seguida, o oficial pedrista diz vislumbrar guerrilhas na direcção do «rico e pitoresco» convento de Bustelo, facto que poderia ameaçar a sua «retaguarda». A partir daqui, no relato bélico que temos vindo a citar, as acções passam-se já em Penafiel.

E se Hodges não refere topónimos paredenses, embora forneça, como vimos, indicações um tanto sugestivas, já um documento de um oficial do lado das forças leais a D. Miguel não deixa quaisquer dúvidas a esse respeito. Numa missiva enviada desde o quartel de Amarante, com data de 20 de Julho de 1832, e mais tarde publicada na Gazeta de Lisboa (N.º174, 25/07/1832), o Visconde de Santa Marta, José de Sousa Pereira de Sampaio Vaía, refere-se aos acontecimentos de dia 18 da seguinte forma:

«Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor: Tenho a honra de participar a V. Ex.cia que no dia 18 do corrente, se adiantou sobre Baltar a força dos rebeldes, que me havia seguido, e tentado surpreender-me na minha passagem de S. João da Madeira para Penafiel. Esta força reforçada em Valongo por 200 homens e duas peças de Campanha, atacou os meus postos avançados no lugar das Paredes às 9 horas da manhã; fiz escolha das Ordenanças que tinham armas de adarme d’onça, dei-lhe cartuxame, e fiz marchar 200 homens de Guerrilhas, e Voluntários, e reforçar a minha vanguarda e flancos, e estendi nas ruas da Cidade o Batalhão em Atiradores, apoiado com as competentes reservas. Formou o inimigo em três colunas, a do centro entretinha-me com um fraco tiroteio, enquanto a dos flancos forcejavam por envolver-me, e cortar-me a retirada; veio-se retirando o Batalhão sobre a sua reserva, e fazendo fogo até ao monte que fica sobranceiro acima da Vila; aí formou em linha, e fez frente três vezes ao inimigo para facilitar a retirada dos Voluntários, e Guerrilhas, que estavam engajados no fogo sobre os flancos apesar dezasseis tiros de Artilharia feitos sobre o Batalhão, e de um tiroteio de três horas e meia. Tenho a satisfação de não ter tido um só homem ferido, ou morto, tendo o inimigo perdido 42 mortos todos Ingleses, excepto 2, e 11 carros de feridos, incluindo um Coronel Inglês (…).» 
 
Visconde de Santa Marta

Foi, pois, no contexto desta passagem – e confrontos ali travados – do Regimento de Infantaria 18 por Paredes, composto por tropas inglesas e voluntários portugueses da causa liberal, que ocorreu o óbito cujo registo seguidamente se transcreve (ADP, 1832, fls. 226v.-227):

«José Anastácio, solteiro, filho de Custódio Moreira Carneiro, do lugar das Paredes desta freguesia do Salvador de Castelões de Cepeda, tendo sido morto pelos rebeldes com tiros e feridas mortais junto ao Poço do Ermo não se podendo confessar posto que requeresse confissão publicamente declarando havia quatro anos se não tinha confessado porém mostrando dor e arrependimento foi trazido em carrela a esta igreja no dia 18 de Julho do ano de 1832, em que foi sepultado pelos constitucionais, não se lhe podendo fazer enterro solene, pela confusão e invasão dos inimigos, era ao parecer de mais de vinte e cinco anos, nada se lhe fez de sufrágios, e para assim constar fiz este assento aos 2 de Outubro de 1832. Abade D. José de Noronha Faro e Lucena.»

Da lista de visados pela Alçada (1829) de que falámos no início, consta um «José Anastácio, filho de Custódio Moreira, do concelho de Aguiar de Sousa», que fora citado pelo tribunal miguelista, mas que se encontrava então «ausente». Supomos tratar-se da mesma pessoa do assento transcrito. Torna-se, assim, irónico que um acusado pelos absolutistas tenha acabado assassinado, na sua terra, por tropas liberais.

Nota final para o topónimo, que designa o lugar onde o desafortunado acabou baleado: perto do cruzamento das actuais ruas José Barbosa Leão e Vitorino Leão Ramos, em Paredes, existe uma placa com a designação «Rua do Ermo», que assinala – e salvaguarda – o velho topónimo.

(Continua)

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