Paredes e a Guerra Civil (1832-1834) - II

Depois dos combates de Paredes e Penafiel, o Visconde de Santa Marta, oficial absolutista, atravessa o Douro, passa as «elevadas serras» de Aguiar de Sousa e, pelas 16h do dia 20 de Julho de 1832, acampa com milhares de homens em Recarei.

Esta movimentação de militares, pela sua magnitude e adivinhável aparato, não pôde, obviamente, ter passado despercebida à população do sul do actual concelho paredense. Já para não falar das consequências da necessidade de abastecimento e acomodação das tropas, que para tal não hesitavam em «requisitar» víveres e bens aos locais, embora não tenhamos, por ora, notícia de qualquer Comissão de Liquidação de Perdas e Danos constituída no concelho de Aguiar de Sousa, à semelhança de o que se verificou noutros municípios.

O Visconde comandava uma Brigada, três esquadrões de cavalaria, quatro peças de artilharia e um batalhão de realistas de Viana (Gazeta de Lisboa n.º174, 25/07/1832). A Grande Enciclopédia aponta para «10 mil homens, quatro esquadrões de cavalaria com perto de 200 cavalos e 5 peças de artilharia». A crer nestes números, estamos a falar de uma passagem e acampamento de soldados em número que ultrapassa o dobro da população actual da freguesia de Recarei. Santa Marta informa da dificuldade que foi, sobretudo para os seus artilheiros, a caminhada desde a marginal do Douro até àquela localidade, subindo as íngremes encostas de Aguiar de Sousa, o que «parecia impossível» para quem carregava quatro ou cinco peças de artilharia (canhões).

Na manhã do dia seguinte, o contingente «usurpador» avança para Ponte Ferreira, entre as freguesias de Campo, do actual concelho de Valongo, e de Gandra, do de Paredes. A travessia pétrea sobre o rio e que dera nome àquele lugar haveria de ser palco, dois dias depois, de uma das mais célebres batalhas da Guerra Civil.

A 23 de Julho de 1832, D. Pedro IV, que se encontrava em Valongo, ordena o avanço das unidades na direcção das posições inimigas. O imperador testemunharia a partir do Calvário (Campo) um acontecimento no qual, segundo Soriano, participaram 23 mil homens, sendo 15 mil do lado miguelista e 8 mil do lado liberal. O combate durou nove horas, durante as quais terão perecido mais de quatro centenas de homens (Silva, 2013:152-3). 

Ponte Ferreira (Campo, Valongo)

Encontram-se, na historiografia, versões discordantes acerca do local da refrega. Enquanto que várias fontes circunscrevem o episódio à própria ponte e zonas mais próximas, um escrito de um professor de Gandra (nat. da Sobreira) – Manuel António Nogueira da Rocha, o «Barbas de Chibo» (M. das Neves, in O Concelho de Paredes, Bol. Cultural n.º2, 1978:17) -, publicado na Monografia de Paredes (Barreiro, 1922:395-7), «leva» a batalha para um ponto já totalmente dentro dos limites da freguesia paredense: «No extremo nascente deste lugar de Vilarinho de Baixo e pouco a poente da igreja paroquial e ao norte da Granja e de Currêlo, há um monte com os sítios de Boa Vista, Marnotes e Salgueirô. Aqui é que foi a batalha de Ponte Ferreira» (ibid., idem).

Porém, sabemos que, no dia seguinte, 24 de Julho, travara-se uma outra batalha, descrita por Pinho Leal como tendo sido «ainda mais encarniçada do que a da véspera, e durou dez horas» (Barreiro, 1922:394). Esta refrega é que parece, de facto, ter tido lugar na zona geográfica indicada pelo professor. No relatório de Santa Marta publicado na Gazeta de Lisboa (n.º 179) de 31/07/1832, pode ler-se que uma coluna pedrista «se havia emboscado detrás dos pinhais e bosque da Povoação de Sobrado», que ficava «na direita» da sua posição. Na circunstância, os miguelistas estabeleceram «uma linha de batalha sobre as colinas em frente da Povoação da Granja, tendo o Ribeiro Sousa na frente da [sua] linha (…)». O autor trocou o nome do «ribeiro», que só podia ser o Ferreira, e não o Sousa, mas estas indicações é que nos sugerem o decurso da acção, efectivamente, em Gandra, a poente da igreja paroquial, podendo estar aqui a origem (e a confusão) das informações de localização «da batalha de Ponte Ferreira» dadas pelo prof. Nogueira da Rocha – por testemunho de terceiros – a José do Barreiro.

Não é claro que o desfecho da «acção de Ponte Ferreira» tenha sorrido a qualquer dos contendores. Ambos clamam louros de vitória e avançam com números de baixas totalmente díspares. O próprio D. Pedro, numa proclamação publicada na Crónica Constitucional (n.º9, 26/07/1832) diz ter tido «o inexplicável prazer de alcançar uma completa vitória, desalojando o inimigo de suas fortíssimas posições (…)» O que é certo é que, após várias horas de confronto, os miguelistas retrocederam para Baltar e os liberais para a cidade do Porto (Moreira, 2012:64).

Por outro lado, um dos «perdedores», com toda a segurança, foi o visado do registo de óbito que se segue (ADP, Baltar, Reg. Par. Óbitos, 1832):

«Manuel filho de Joana Pereira do Padrão desta freguesia de São Miguel de Baltar faleceu da vida presente [aos vinte e] dois de Julho de 1832, de morte desastrosa de um tiro ocasionado na Batalha de [Ponte] Ferreira, não pode receber os sacramentos, no dia seguinte foi enterrado dentro do adro da Igreja M[atriz] para constar fiz este assento. José Bento Pires dos Santos, abade.»

No seguimento da batalha de Souto Redondo, São João de Ver (Feira), travada a 7 de Agosto de 1832, o Visconde de Santa Marta, que se achava em Penafiel, decide, nesse mesmo dia, mobilizar a sua divisão de tropas (4.ª) e estabelecer quartel-general em Baltar. Aqui permaneceu durante dez dias. A partir desta localidade, o oficial miguelista dá instruções estratégicas para que se impeçam e apreendam abastecimentos à cidade do Porto. O objectivo, nesta altura, era já tornar impossível a vida no burgo, onde D. Pedro e suas tropas se encontravam cada vez mais cercados.

Numa carta dirigida ao Conde de Barbacena, Santa Marta refere que tinha «dado disposições para que da mina de carvão [cessassem] as remessas para o Porto deste combustível» e que, no dia anterior, se haviam já apreendido «sete carros carregados» do referido material. Diz ainda ter apreendido «juntas de bois», que «de Valongo as padeiras não [iam] ao Porto vender pão» e que se tinham retido farinhas, inutilizado fornos e moinhos que pudessem vir a ser úteis aos liberais. Noutra carta citada na Gazeta de Lisboa, é referido, sobre o mesmo assunto, que «por um piquete nosso [realista] foram apreendidas ao pé do Porto 16 cargas de farinha com 16 bestas muares, que iam para entrar naquela cidade, as quais chegaram hoje aqui [Baltar] às 11h do dia, e foram as bestas para o depósito, e da farinha se mandou fazer pão para as tropas» (Gazeta de Lisboa n.º 192, 15/08/1832).

No dia 17 de Agosto (Gazeta de Lisboa n.º201, 25/08/1832) o também realista Visconde do Peso da Régua, Gaspar Teixeira de Magalhães e Lacerda, estabelece o seu quartel-general em Recarei. A Grande Enciclopédica diz que este militar se entregou «aqui por muito tempo à inacção que havia prejudicado o seu antecessor, apoiando-se no Sousa». Não sabemos, ao certo, quantos dias demorou essa «inacção» miguelista em Recarei, mas temos notícia de que, nove dias depois, Lacerda e suas unidades já se achavam aquartelados em Valongo (Gazeta de Lisboa n.º 192, 15/08/1832).
 
Gaspar Lacerda, Visconde do Peso da Régua
 
Esta não tinha sido a primeira vez, contudo, que o visconde havia estado na região. A 1 de Julho de 1828, no âmbito de um cerco a uma divisão liberal sitiada no Porto, a unidade sob seu comando estacionara algures numa das freguesias do extinto concelho de Sobrosa (todas hoje do concelho de Paços de Ferreira, excepto a sede). Para aprovisionamento das tropas, deslocou-se a esta última localidade um escrivão, com o objectivo de «requisitar», por ordem de dois juízes, uma junta de bois a um proprietário local. Esse proprietário era João Moreira da Silva, que após o triunfo liberal instauraria um processo aos três responsáveis pela perda dos bovinos. A defesa contra-argumentou que: 1) os lavradores foram avisados do devido ressarcimento da perda, devendo levantar os respectivos vales ou pagamentos na cidade do Porto, e que se o acusador não o fizera, então só poderia «imputar a si próprio o resultado da sua omissão»; 2) os bois foram «extraídos» até com «prudência e moderação», pois que o acusador ofereceu a junta maior e os extractores decidiram levar antes o gado mais pequeno, «que estava na outra corte mais remota» (Pinto, 2003:45-47).

Sobrosa era – como quase todas – terra de miguelistas, pelo menos no que diz respeito aos seus proprietários mais abastados. Assim o assegura o investigador local José Pinto, que destaca, na sua monografia (2007 v.1 e 2013 v.2), oficiais ligados ao exército absolutista como Albino Dias Torres (major), Manuel José Gomes de Sousa (capitão de Ordenanças), José Dias de Barros (alferes), António José de Sousa de Beça e Cunha (alferes e mosqueteiro d’El-Rei D. Miguel) e Bento Coelho da Silva Barbosa (alferes). O citado autor sublinha que «o povo de Sobrosa foi daqueles que melhor ‘compreendeu e amou’ o rei D. Miguel e não foi daqueles que, na hora do seu embarque para o exílio, se indignou contra ele. Amou-o até ao fim. Proprietários das grandes Casas de Sobrosa estiveram a seu lado, desde o início (1828) e só regressaram a suas casas, quando tudo terminou (1834)» (Vol. 1, op. cit.:44).

Ali ao lado, em Louredo, a rogo do bispo da Diocese, pedia-se a intervenção divina em face dos desacatos provocados nas igrejas pelos liberais. Nos dias 21, 22 e 23 de Setembro de 1832, diz o livro de Visitações, «se fizeram preces solenes mandadas pelo nosso Ex.mo Prelado em desagravo dos vis e ímpios pecados feitos pelos desavergonhados e perversos malhados nos Sagrados Templos e no Augusto Sacramento do Altar, causando horror por seus irreligiosos e ímpios atentados» (vide «As Visitações em Louredo»).

Vimos já, anteriormente, como um pobre rapaz de Baltar se tornou vítima colateral das incidências da Batalha de Ponte Ferreira. De facto, não era necessário ser-se interveniente directo do conflito, ou parte integrante de algum dos exércitos em confronto, para se poder vir a sofrer, directa ou indirectamente, os efeitos de uma guerra que também se travava no território do actual concelho de Paredes.

E em Agosto de 1832, as movimentações ainda afectavam a vida na paróquia de Castelões de Cepeda, inibindo, por exemplo, o pároco, de administrar os sacramentos aos moribundos. Isso mesmo se constata pelo assento de óbito que a seguir se transcreve (ADP, Reg. Par. Óbitos, Castelões de Cepeda, 1832, fl.227):

«Bernardina Rosa Faria, solteira, da Cepeda desta freguesia do Salvador de Castelões de Cepeda, faleceu da vida presente, nesta Residência, aos 21 de Agosto de 1832 anos e foi sepultada dentro desta igreja aos 22 do mesmo mês e ano, sem levar os sacramentos, por não poder ser em razão da Invasão dos Inimigos Rebeldes e de malina e sem poder falar; era de maior de 50 anos, tinha um filho de solteira que vivia com ela, e para assim constar fiz este assento aos 2 de Outubro de 1832. Abade D. José de Noronha Faro e Lucena.»

No dia 29 de Setembro, dia de S. Miguel, santo homónimo do rei absoluto, o oficial realista que havia estado aquartelado em Recarei, Gaspar Lacerda, desencadeia uma ofensiva militar sobre o Porto, composta por cerca de 10 mil homens (Silva et al., 2008:48). A incursão resulta em fracasso, o que teve como consequência a substituição no alto comando do Visconde do Peso da Régua pelo Visconde de Santa Marta, que alimentavam, aliás, uma assinalável rivalidade pessoal. A unir estes dois chefes das tropas de D. Miguel, e como mera curiosidade, apenas o facto de ambos terem decidido estabelecer, como vimos, quartel-general em terras paredenses (Recarei).

No dia seguinte a esta refrega, e não sabemos se directamente relacionado com ela ou não, dá-se o óbito seguinte na paróquia da Sobreira (1832, fls. 180):

«José Pereira sargento primeiro empregado no Arsenal Real do Exército, marido de Emblina Maria, assistente no pátio dos Artífices, freguesia de Santa Engrácia, Lisboa, faleceu em 30 de Setembro de 1832 em casa de João da Rocha do lugar de Santa Comba desta freguesia de São Pedro da Sobreira; de que se fez logo este assento por ser sepultado nesta igreja, era ut supra. O Pe. José Bernardo Brandão, coadjutor.»

Em Janeiro de 1833, prosseguiam os confrontos do famigerado «Cerco do Porto», com os absolutistas a bombardear a cidade e a tentar, por todos os meios, impedir a chegada de abastecimentos e de reforço militar. Nesse mesmo mês, morre «de uma granada» e é sepultado em Vila Nova de Gaia, um soldado miguelista natural do lugar das Orengas, Sobreira, que hoje pertence à freguesia de Recarei (Reg. Par. Óbitos, Sobreira, 1833, fls. 185):

«Manuel da Cruz Martins, soldado miliciano do Regimento da Maia, da terceira companhia faleceu no dia 4 de Janeiro de 1833 e foi sepultado no mesmo dia no Adro de Santo André de Vila Nova de Gaia, morto de uma granada, com testamento em quanto ao pio vinte missas de que fiz esse assento era ut supra. Era natural do Lugar de Orengas, freguesia de São Pedro da Sobreira. Declaro que era casado com Violante Nogueira da Rocha.»

Dois dias depois, da mesma freguesia e do mesmo regimento ao serviço de D. Miguel, uma outra vítima deste contexto:

«Paulino da Rocha Pinto, casado com Ana Moreira Barbosa do lugar do Outeiro de Recarei faleceu no dia 6 do mês de Janeiro de 1833 e foi sepultado no dia seguinte no Hospital de Lamego. Declaro que o dito Paulino da Rocha Pinto era miliciano do Regimento da Maia e para constar fiz este assento. Obradou ao costume da sua casa.»

Estes não seriam, contudo, os únicos naturais do território do actual concelho de Paredes a morrerem neste mesmo mês e vitimados pelo conflito que opunha liberais a absolutistas. Natural de Aguiar de Sousa, era o malogrado soldado do registo de óbito seguinte (ADP, Reg. Par. Óbitos, Aguiar de Sousa, 1833):

«Manuel da Silva do lugar de Alvre desta freguesia de São Romão de Aguiar de Sousa, casado com Doroteia Martins, faleceu da vida presente no Mosteiro do Couto junto a Oliveira de Azeméis, no Hospital Militar, a 26 de Janeiro de 1833. Não fez testamento. Seu pai João da Silva lhe fará o bem da alma. E a seu rogo e com informação do mesmo lavrei este assento em 23 de Abril de 1833. O abade António de Pádua Vasconcelos.»
 
(Continua)

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