Paredes e o 9 de Abril (1918)
Excertos do livro «Paredenses na Grande Guerra: 1914-1918», de Ivo Rafael Silva (CEI-ISCAP/CM Paredes, 2017, p.205 e ss.):
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Ilustração Portuguesa |
O CEP [Corpo Expedicionário Português] era, nesta altura, um corpo extremamente frágil, desfalcado, cansado, insatisfeito, mesmo revoltado, já com a perspectiva no horizonte próximo de ver chegado o alívio da rendição. Ora, «é esta força que vai receber o primeiro ímpeto de 4 divisões frescas (6 com as duas em apoio), encabeçado por tropas de assalto especializadas e precedida por um dos mais intensos bombardeamentos da guerra» (idem:383).
Às primeiras horas da madrugada, contando com a cobertura de um denso nevoeiro, pouco depois agravado pelo não menos espesso fumo dos rebentamentos, o exército alemão avança impiedosamente e quase de forma invisível sobre o sector defendido pelas tropas portuguesas. A barragem fortíssima de artilharia corta comunicações, impede o reabastecimento de munições – algumas já se encontravam encaixotadas dado estar prevista a rendição – e atinge as linhas com violência, destruindo trincheiras. A infantaria alemã ataca com maior vigor entre as 8h e as 8h30 e, a partir das 10h, são já às dezenas os feridos que, de forma desordenada, dão entrada nos hospitais da retaguarda. Portugueses feitos prisioneiros são às centenas, chegando ao total de sete mil, segundo a generalidade das fontes. Morrem mais de três centenas de homens e mais de mil completam o número de baixas por ferimentos adquiridos em combate. O 9 de Abril foi, nas emotivas e esclarecedoras palavras do médico Jaime Cortesão, «o Alcácer Quibir do CEP». António Barbosa, combatente de Sobrosa, deixara escrito no seu poema de guerra: “No dia 9 de Abril/Dia de grande aflição/Muitos soldados morreram/No campo da separação”.
Muitos dos paredenses testemunharam e participaram directamente naquela que foi, até hoje (2017), a última grande batalha do exército português. E se uns sentiram na pele os efeitos directos e indirectos do tenebroso combate, já outros – os que faziam parte do BI 35, por exemplo – encontravam-se na altura em viagem de comboio rumo a Doudeauville, não tendo recepcionado a ordem de mobilização. As fichas do CEP não detalham as acções individuais de cada combatente no 9 de Abril, antes apontando, regra geral, a genérica informação “tomou parte na Batalha de La Lys”, havendo, contudo, uma ou outra excepção. É o caso da de António Coelho de Carvalho, natural de Vilela, que ao ver destruído o abrigo em que se encontrava com a respectiva metralhadora decide pegar na arma e recolocá-la numa outra posição, pronta a fazer novamente fogo sobre o inimigo. Por essa razão, já depois de terminada a guerra, é agraciado com um louvor formal, onde se sublinha a prestação de «óptimos serviços» e a manifestação de «coragem e serenidade» durante a batalha de La Lys.
A ofensiva alemã não se ficara pelo dia 9, prolongando-se ainda nas semanas seguintes, mas ao fim das primeiras 24 horas a 2.ª Divisão portuguesa já havia retirado de forma completa e irremediavelmente desordenada. Houve, todavia, alguns focos de resistência lusa em acção conjunta com ingleses. Porém, «em termos oficiais e pela boca do seu comandante, a 2.ª D.I. deixou de ser uma unidade operacional pelas 13h40 de 9 de Abril» (idem:455).
O colapso do CEP redunda em 35% de baixas do seu efectivo num único dia, a esmagadora maioria das quais (92,7%) respeitante a militares feitos prisioneiros (cerca de 7 mil, embora os números variem segundo as fontes consultadas). Isto significa que, mais do que um colapso físico, o Corpo Expedicionário Português teve um colapso moral, tendo muitas das suas unidades pura e simplesmente optado pela rendição. Muitas delas, vendo-se cercadas, não tiveram alternativa, pelo que dadas as circunstâncias render-se acabava por ser a atitude mais racional. «Os portugueses nas linhas avançadas sabem que não têm meios de deter a maré que lhes cai em cima, não confiam no comando, confiam ainda menos no reforço dos Britânicos (com toda a razão), pelo que a rendição é natural nas condições de moral muito baixa» (idem:463).
No que respeita às responsabilidades pelo desastre que acabavam de sofrer, entre os soldados portugueses o que vingava era a ideia de traição e abandono por parte dos ingleses. É isso mesmo que emana das palavras do paredense António de Sousa Barbosa e inclusas no seu poema de guerra: “Os Alemães avançaram/Na frente dos portugueses/Por traição dos ingleses/Muitos soldados morreram”.
E o que ficara, ou o que fora feito, então, das unidades sobreviventes ao 9 de Abril a partir dessa data? Algumas são adstritas a batalhões britânicos, muitas encarregues de serviços de reconstrução de trincheiras, estradas, caminhos-de-ferro, reparações diversas e serviços de faxinas, mas não só. Duas companhias de Infantaria 35 – entre outras – e das quais fariam parte, pelo menos, uma dezena de militares de Paredes, vão participar no ataque e perseguição ao inimigo nas margens do rio Escalda, já em território belga. Uma jornada gloriosa para os aliados, prenúncio da derrocada definitiva das tropas germânicas, levada a cabo no dia 9 de Novembro de 1918, antevéspera, portanto, da assinatura do armistício.
Depois de cessadas todas as hostilidades – com o acordo assinado em Compiègne à undécima hora do undécimo dia e undécimo mês de 1918 –, os portugueses são ainda obrigados a permanecer várias semanas e mesmo meses em França – alguns dos que foram feitos prisioneiros são levados também para a Holanda – devido à falta de transporte que os trouxesse de volta a Portugal. Já os mortos, esses, nunca saíram da Flandres.
Inicialmente, a maioria fica dispersa em cemitérios improvisados nas proximidades dos locais onde a morte se dera. Seria necessário esperar cinco anos para que se concluíssem os trabalhos de identificação, exumação e concentração dos féretros portugueses num único espaço sepulcral, uma tarefa que ficou a cargo da Comissão Portuguesa das Sepulturas de Guerra. Em 1921, o Ministério da Guerra deu início às diligências para a criação do Cemitério Militar Português, a implantar em Richebourg L’Avoué, no preciso local onde estiveram as primeiras linhas de trincheiras do CEP, num terreno cedido a título perpétuo pela República Francesa (Correia, 2015:394 e ss). Após morosos trabalhos de identificação e trasladação – cerca de duas centenas de corpos ficaram até hoje por identificar –, só em meados da década de 30 é que fora oficialmente inaugurado o maior cemitério de militares portugueses além-fronteiras, com 1831 corpos inumados. Entre eles, quatro paredenses.
Cemitério Militar Português de Richebourg l'Avoué |
De acordo com a generalidade das fontes bibliográficas consultadas – que têm por base o livro de estatística do CEP e do CAPI (AHM, 1/35/1401) – os dados gerais da participação portuguesa na frente europeia do conflito apontam para um total de 55165 mobilizados. Destes, 43260 dizem respeito a soldados, 5398 a cabos, 3051 a sargentos, 3376 a oficiais e 80 a membros da Cruz Vermelha Portuguesa (54 mulheres e 26 homens). Em termos de baixas contabilizam-se 2086 mortos (3,8% do total de mobilizados), 5311 feridos (9,6%), 199 desaparecidos (0,01%) e 7000 prisioneiros (12,7%). Convém acrescentar que por feridos se entende geralmente os acometidos de problemas físicos incapacitantes, i. e., que «levaram os homens que os sofreram a terem de deixar de prestar serviço de campanha» (Fraga, 2010:608), o que exclui feridos ligeiros.
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Durante os últimos anos da chamada «Primeira República» (1910-1926), temos notícias que nos dão conta de evocações cerimoniais realizadas localmente. Além de missas por alma dos militares finados, no dia 9 de Abril de 1924, por exemplo, é rememorada a batalha de La Lys, com repique de sinos e dois minutos de silêncio, durante os quais, pelas 17h, o comércio de Paredes fechava as suas portas. Ainda nessa noite e pelo mesmo motivo, em Vilela, foi dada uma salva de 21 tiros. Por outro lado, parece ter havido também, aparentemente, quem recusasse levar a cabo tal rememoração, pois um artigo do jornal O Novo Paredense (20/04/1924) critica o pároco de Bitarães por se ter «fechado em copas e nem sequer [ter ordenado] o toque dos sinos pelos 2 minutos de silêncio». Dois anos depois, em 1926, no mesmo periódico (edição de 12/04/1926) lamentava-se a fraca assistência numa missa evocativa do 9 de Abril, «o que prova o esquecimento imperdoável a que foram votados aqueles nossos irmãos que, nas trincheiras da Flandres e nas horríveis plagas Africanas, deram a sua vida pela Pátria».
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António Coelho da Silva – O paredense tombado no 9 de Abril
Nasceu no lugar de Casais, Gandra, a 27 de Fevereiro de 1890. Era filho de Joaquim Coelho e de Maria da Silva, ambos jornaleiros de profissão. À data da mobilização para o Corpo Expedicionário Português já era casado. Foi mobilizado pelo Regimento de Infantaria 32 (Penafiel). Ostentava a placa identificativa n.º 21835 e detinha o posto de soldado (n.º 496). Embarcou em Lisboa, rumo a França, no dia 14 de Julho de 1917. No dia 18 de Outubro é colocado no 4.º Grupo de Metralhadoras, 2.ª bataria, sendo-lhe atribuído o n.º 152. Na trágica «Batalha de La Lys», ocorrida 9 de Abril de 1918, o 4.º G.M. encontra-se no subsector de Fauquissart, enquanto parte da 4.ª Brigada de Infantaria, em apoio de fogo aos batalhões da célebre «Brigada do Minho» (B.I. 3, 8, 29 e 20). Aos primeiros bombardeamentos são destruídos os comandos do batalhão e brigada, sendo ainda cortadas as comunicações. A infantaria germânica avança rapidamente sobre o flanco esquerdo do sector, aniquilando a resistência da primeira linha (A) e progredindo de forma avassaladora sobre a restante área até então defendida pelo CEP. Nas incidências desta batalha, o soldado paredense António Coelho da Silva, inicialmente dado como desaparecido, acaba por ficar entre as cerca de três centenas de mortos portugueses registadas só naquele dia. Do documento que consultámos no Arquivo Histórico Militar, em Lisboa, não consta o local de inumação.
Lista actualizada[1] dos Paredenses Mortos na Primeira Guerra Mundial
[1] Inclui-se nesta actualização um combatente falecido em Moçambique – Ventura Rodrigues – e que não consta do livro citado.
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